quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

do outro lado dessa ilha

Ar fa um in fe li z me n te. - - - - A chuva rasante. - - - Alguém se rasteja por uma parede - - - Amanhã de manhã você dorme. - - - Branco branco branco. - - - Estamos em Assunção, virgem em saturno paraguaio. - - - Tu tu tu tu. - - - Ocupado? - - - Ninguém tem sinal nessa festa? - - - Telepatia e teoria about. Know how? - - - Cisne, asno, gaivota. - - - Porcelana, bibelot, marreta. - - - Desisti das heranças. - - - Só tenho a ti, onda que vai. - - - Aturde, nutre, incêndio. - - - Pequeno abutre se alimenta de salsugem - no papel - Quem vem lá sou eu. - - - Ass: As raspas da champagne que você bebe. - - - Samambaias, avencas, abraços. - - -Espuma branca luas claras nas varandas. - - - ps. Feliz ano novo, meu amor.
8 8 8

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Charada de seu Teófilo

Sete linhas mal preenchidas e uma charada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pita matou quatro, quatro matou sete . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . Dos sete escolhi a melhor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Atirei no que vi, matei o que não vi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Com a madeira santa, assei e comi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sem tirar água do céu ou da terra eu bebi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . E com isso cheguei aqui.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Na rodoviária

Toda uma confusão de filas. "Quero ir pra Campinas! e não tem passagem!", escuto de soslaio. E prà praia? Quem quer ir? Mil mãos candidatas a levantarem-se. Para ir até a minha cidadezinha e deixar a megalópole onde me fiz a vida miserável, preciso de dois ônibus, porque não há ônibus direto. Levo a mala, mais a valise de mão: toda palavras-cruzadas, livros, poesias, cadernos de escritas. Meu pé! Mas que conho! Por que não olha por onde anda? Por que a gente tem de ir ver a família obrigatoriamente nessas épocas nefastas de fim de ano? "E pra Bertioga, tem?"; terei de ficar-me estacada quatro ou seis horas esperando o ônibus. Depois, mais umas esperando o ônibus para a minha cidade. Bom ano-novo, senhora. Puxo meu dominox e a caneta.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Próspero, Caliban

O corpo limpo e perfumado, risos ao redor - para ele, a virada do ano tinha sempre uma aparência de cadáver bem cuidado, ele em vestes brancas virilhas secas no velório de um ano bonito e iluminado, sem os sinais da quimioterapia, sem os estertores de dois minutos atrás. Este ano eu pus cueca rosa, para dar amor. Os parentes se acotovelam para ver Copacabana na televisão e o maior reveillón do mundo acontece bem aqui, embaixo do nosso nariz, onde um porco inteiro assado e morto diz muita gordura para o ano que vai nascer. A paz também veio prestigiar, na forma da prima alcoolizada que canta “irmão, é preciso coragem pra seguir viagem quando a noite vem”. Mas 2009 será um ano bom, como nenhum outro jamais foi.

sábado, 27 de dezembro de 2008

a compreensão do néctar

a verdadeira monotonia só existe no lar. a monotonia traz a casa, um milagre - cotidiano. a casa é feita de cor de chuva vista pela janela. um tom? a janela não é uma escolha, sem chance. a arte não é ato de vontade, pasolini dizia que a técnica vem antes, estava certo. derrubando as paredes e fazendo do apartamento um cômodo único, meu projeto não pararia em pé. o concreto vira um grande saco cheio jogado no chão. a questão é: se a intuição que tive não era ela própria uma obra. um estalo. click fotográfico, alguém precisa saber? produzir é publicar? publicação é produção? tornar público é fazer? a obra é vida não enrustida e talvez nesse sentido mataram a arte, e eu também matei. algo eu queria descobrir aí só e simples.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A Zeladora

Um mp3 no bolso do uniforme. Só um dos fones no ouvido. Luva na mão. Abre lixeira. Esvazia lixeira. Fecha lixeira. Pega bandejas. Limpa bandejas. Separa bandejas. Azul, Burger King. Verde, Mc Donald’s. Cinza, Girafas. Detestava copos descartáveis. Olha a colega de uniforme e sorri. Troca música. Apalpa seio. Aperta mamilo. Segue para o vestiário. Tira o lixo das lixeiras do carrinho. Guarda o carrinho. Tira a luva. A colega aparece. Tiram o uniforme. Olham o relógio. Têm dezoito minutos. Apalpa o seio. Dela. Morde os mamilos. Dela. Troca música. Separa cada parte. Sua. Junto com cada parte. Dela. Senta a colega no carrinho. Desliga a música. Tira as pilhas do mp3. Restam cinco minutos. Será que as pilhas vão agüentar?

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Diário de Estância, VI


Natal de 2008, no dia da morte de Harold Pinter. Pausa. Houve uma longa pausa na praça onde nada sei. Todas as árvores da minha rua levam postas voltas e mais voltas de bijuteria barata. As contas acendem. Não piscam, dão uma luz estanque que me faz pensar em polaróides recém-tiradas, em Zsa Zsa Gabor, talvez, fazendo a senhoria siderada de “The Birthday Party” numa montagem mal-sucedida em Vegas, 1967. Eu dançaria, eu me largaria num vero showstopper, fosse este o ventre rhinestoneado de todo o Universo. Mas houve uma longa pausa na praça onde não liguei para ninguém. Meus heróis morreram de velho mesmo. Saímos, Anna e eu, encontrar com Gabriel. Nunca sabemos ao certo em que lugar do país ele está, é das coisas que nos fazem amá-lo.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

véspera de natal

Não conseguia entender porque a data era no 25, se era sempre um almoço melancólico, enquanto a vida noturna da véspera enchia de palpitações a minha casa a que todos vinham, o antiquário da cultura nacional. Aos 6 anos, não sei a fama ou o som, ter uma guitarra era minha vida mas ganhei a casa da Barbie. Meu irmão fez a caixa descer pela lareira, risadas de felicidade, mas todos comigo diziam que era do Papai Noel pra mim. Eu não queria os holofotes daquela encenação. Senti um constrangimento enorme pela farsa e saí correndo pra escada, onde me escondi no escuro e fiquei chorando constrita em voz alta alguma frase. De longe, riam. Minha irmã veio me salvar. Eu não entendia porque comentavam minhas histórias uns pros outros.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Mandala 2

A mandala tem vinte centímetros e eu queria pendurar na janela, em frente ao computador, para absorver seus sinais pacificantes e lembrar de minha mãe. Mais fácil seria amarrar o fio entre as grades, sem bater prego nem nada, somente dar um laço apertado. Mas há apenas quinze centímetros nas frestas. A mandala é de vidro e não sabe dobrar. Há o vão entre a janela e a grade, um bom espaço, casa antiga com o vidro recuado nessa espécie de caixote. Peguei o martelo e alguns pregos de aço, em dúvida. O receio se confirmou: um caixote de concreto sólido, teria mesmo de ser, a grade está “chumbada” como dizem. Um dia talvez eu aprenda a usar a furadeira. Por hora, apenas catei uma ripa de madeira na oficina, encaixei transversalmente e bati o prego ali.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Texto para cartão de Natal

Natal é tempo de histeria. E como já dizia Freud, histeria é algo que pega, contagioso feito lepra. As gordas madames que empurram seus carrinhos nos supermercados: o menino-jesus é um pedaço de tender. Que delícia! E reis-magos de castanha e damasco; panetone, o muro-das-lamentações de panetone. É tudo um paraíso-celeste de figo turco. E as crianças que choram pelo papai-noel e os shoppings, apelativos como nunca na sua decoração de natal outubrina; Natal é todo um encher-se, rechear-se, regalar-se, tempo de ataques apopléticos, congestões e bebedeiras homéricas. Começa-se desejando feliz Natal e, depois de mil-cervejas e dez garrafas de vinho vagabundo, manda-se todos tomar no cu.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Que bonitos ojos tienes (3/3)

Agaraneime futum galinha preta a outra era quaquá até não poder mais Rafaella não gostava muito dela não tinha tempo para não gostar ainda mais vestido preto? calça jeans? Do apartamento da Jacira foi comboio com as duas pro enterro mais ninguém ver o despacho encomendado moço deixa o caixão aberto dois minuto faz favor na vala ao lado três boliviana e era domingo abre o caixão ------ Jacira, babadeira, morreria se não fosse o defunto - picumã apatá silicone cadê? Boliviana coruja amapô vem ver olha pras duas "¿era vuestro hermano?", Rafaella chora enrustida, a outra aparvalhada: no caixão tá um ocó maricona até chuchu na cara! "tán joven", fala, "¡y que ojos tán bonitos!" - Jacira sempre teve lindos cílios.

sábado, 20 de dezembro de 2008

ninini

tocaram a campainha. abri a porta. tenho pensado ultimamente que devo ficar em casa, relaxar, assistir a um filme e sair só no sentido de ir à cozinha, porque a cozinha tem servido como uma saída. mentira. só no sentido de encontrar comida pronta. enfim, tenho refletido sobre estar em casa, a casa como abrigo ou como santuário, algo que não sei mais o que é. sei muito pouco sobre o abrigo e sobre comida. não sei dizer ao certo o motivo, uma necessidade de Ar talvez. durou anos, o desinteresse por abrigo e a urgência de rua. "vou pra rua", dizia com vontade. agora abro quando tocam a campainha e me interrompem. na porta aberta, um rapaz moço homem. ele me deu um beijo e saiu. aceitei de bom grado, fechei a porta e horrores.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

colméia de cães

Ela se limitou a dizer que estava bodada porque o sol cansa. Preferia ficar sentadinha na poltrona com a luz apagada. Quem quisesse chegar mais perto teria que ignorar qualquer tipo de pudor. Ela não tinha nenhum. O dia todo de mini-saia. Ficava com a perna aperta para que os cachorros a lambem-se. Rottweiler, Pequinês, Basset, Pastor Alemão, Pinsher (do número três pra cima), Rusky Siberiano, Bulldog, Poodle, Pitbull, Collie, 101 Dálmatas, Yorkshire Terrier, Fox Terrier, Terrier Brasileiro, Dobermann e todos os vira-latas. Se surpreendia com as raças raras e com as combinações. Nunca se importou em nomeá-los ou qualquer coisa do tipo. Eles também não sabiam o nome dela. Nem ela sabia. E a cada pôr-do-sol, lá estava ela. Bodada e lambida.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Diário de Estância, V


Cláudio esticado sobre um banco. Veste os trapos de frio, trata-se (como todo o resto) de um inverno fora de época. De lado, cabeça apoiada no molho de mãos. Entre (estamos) pombos, triciclos, um obsceno casal de poodles se roça sob a mirada divertida dum tipo de óculos. Diz que ele perdeu a cabeça no longo dos setenta. Simeão on acid, desde então tem levado seu deserto muito quieto. Ao que me consta. Vez em quando me acena e gesticula um cigarro, por favor. Bafora para cima, discreto e satisfeito, debanda. Não me olha nos olhos. Isto é um trapo do Cláudio, justo o que o torna inesgotável. Alguém começa, não poderá nunca ser interrompido, ou despistado, ou completo, Peter foi para Belgrado e eu não telefonei. Tampouco escrevi. O tempo está passando, e eu não estou ficando mais ateu.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

madonna mia

This is the story of my life. Acontecendo: a massa rebarbativa cresceu por meses nas minhas entranhas de flor crescendo a estranheza de gerar um ser completo, até expeli-lo, e vingado assim da minha carne: um ser, como a lua, a parte de mim e por nós visto, sentido amadurecendo no céu dessa quarta-feira, em diante. Se eu tivesse um gatilho nas mãos, uma forquilha de sufocar passarinho, não sei o que seria do menino dessa mãe esnobe que não tem o que comer. Falta: dinheiro, açúcar, gavião. Quem mandou essa galinha botar no mundo? Sento-me no chão a chocar a dúvida com o poema no colo, não sei quem consola a quem, os dedinhos sujos de fuligem. Céu da Brigadeiro. Esse aí nasceu fudido.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Mandala

Esse é um texto leve com algumas palavras enfileiradas preenchendo linhas para descansar a mente como uma música. Eu estava na cidade onde nasci, visitando minha amiga e minha mãe, e subimos a ladeira de paralelepípedos saindo do bebedouro onde os tropeiros deixavam seus cavalos bebendo água há tantos anos, subindo até a igreja, a praça do relógio onde fica a escola de balé em que estudei com tia Dora. Minha mãe aprendeu xilogravura e está apaixonada por mandalas que relaxam os olhos e trazem paz. Queria me dar um presente de Natal, era domingo e a ladeira estava cheia com as barracas da feirinha de artesanato. Subimos entre centenas de pessoas mas a multidão não me assusta, não mais. Chegamos à barraca do homem, minha mãe disse para eu escolher a mandala mais bonita e escolhi.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Tempo

Quando levei Lênin para passear, pela manhã, meus olhos divisaram algo dourado na calçada, parecido com uma moeda. Lênin avançou sobre, e tive de controlá-lo com a coleira até que eu pudesse abaixar-me e pegar o metal reluzente. Era uma engrenagem dourada, um disco dentado, desses de relógio antigo. Que coisa. Sem mais, pus o disco no bolso e fomos embora. No dia seguinte, outra peça, no mesmo lugar - quieto, Lênin! - uma roda dentada e vazada, grossa uns cinco milímetros. A pus no bolso com cisma; quem está a desmontar um relógio e deitar as peças pela calçada? No dia seguinte, eis-nos com outra peça. Olho para o alto e vejo, pendurado no nada, logo acima das cimas dos telhados, um relógio-cuco aberto e eviscerado.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Que bonitos ojos tienes (2/3)

Diz que a Jacira tava na pista fazendo ajeum distraída atrás de uma banca tinha atendido um cafu do babado atolado no aqüé e ela na mortadela por que não um filé quando veio um careca de neca pra fora pergunta "cê gosta?" ela disse "nhoé!" fazendo o recreio saiu logo veio outro careca esse sem neca e outro e outro a Jacira gagou correu pela rua gritando "me ajuda" - "Quem veio?" - você e mais ninguém - puta traveca quaquá bronzeada é menos que nada só vale o jaule das alibã que viram Jacira lhe deram um coió deixaram rasgada na calçada - "Mas quem acudiu?!?" - nunca, nunca, nada - as careca alcançaram - o resto - imagina - a gente que pode imaginar. / A bilu desmontada chorando no degrau me deu uma chave. Eu fúcsia, bege - escarlate - / aqüenda a fechadura, aqüenda a bagagem, aqüenda tudo dentro, aqüenda - o apartamento.

sábado, 13 de dezembro de 2008

então é natal

esculturas de plástico no gramado centenário sul-americano: todas luminosas e monumentais, menos papai noel, apresentado em tamanho real. bengala bicolor, bola para pinheiro, presentes embrulhados. os laços dos presentes, frondosos, apertados. milhares de lâmpadas no ar, nas árvores, nos olhos sedentos. moda do séc. 21: as lâmpadas brancas que não piscam. digo sem cor e pisca-pisca, vê lá. decoração ligada! é natal, sonho, sonho de natal, dormimos com a decoração ligada! mixirica, me dá uma mixirica sim, de natal, vermelha. moro aqui em BH, Savassi, que beleza. mixirica.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Diário de Estância, IV


Peter foi para Belgrado e eu não telefonei. Gatunei toda a correspondência entre meu avô materno e sua mãe, passo o dia vendo fotos de velhas estrelas de cinema e de noite saio e encho a cara. Disso tudo, resulta que a praça me segue estranha. Sigo exaurindo as benesses da liberdade. A História me esgota. A Filosofia me esgota. Juliana em Cascais, com as filhas e o marido. O homem não veio ver a respeito do taco saltado, culpa da obra no apartamento ao lado. Esqueci o aniversário de um amigo muito querido, estou botando suor pelas têmporas. Talvez ele tenha vindo, mas eu durmo uma pedreira, não escuto nada, talvez ele tenha vindo dois dias seguidos tocado e tocado e eu, amargando princípio de febre papel amarelento Jane Russell de maiô e braços abertos. Tudo é possível.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

cochabamba

A gente leva a cidade onde quer que vá. Meu sotaque entedia. Atracadouro, Guadalajara, Peruíbe. Acordei querendo, o mar flutuava. Sou um jato. Nenhum Brasil existe. E os pernilongos a coçar, amigas a me olhar como se minhas mãos de estivador passassem a noite a beber com putas numa tasca. Mas, por ser quem deveras sou, yo estava mirando latino-america, desnuda. Vesga, a falar uma língua periférica, implodindo infernos pelos bolsos, meu lado oriental exilou, especiarias de pirata, dissolução. My tropical woman, gingando explosivos no quadril, descendo por todas as ruas. Não é preciso temer, soy la niña que sueña granadas de amor. Escuta, tengo ternura, cariño, paúra: las montañas, las meninas, los perros, ustedes.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Ninguém aguenta

André, respondendo à sua dúvida, queria apenas dizer que não sou jornalista, mas até onde entendo as matérias de um jornal devem atender a uma mesma proporção difusa entre vários interesses humanos: dez por cento de coisas raras (como as bandas que você gosta) e outro tanto de coisas normais, fáceis ou conhecidas, como você queira chamar. Ninguém agüenta uma vida inteira de novidades: a repetição acalma, faz refletir, amplia o entendimento de idéias que são difíceis apreender à primeira vista. Para te responder completamente, deveria entrar em questões mercadológicas da indústria musical, mas não quero. Somente prefiro dizer, se você me permite, que é preciso ter um pouco de paciência com os outros.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Uma idéia roubada à revista

Desde que seus recursos lhe permitiram, não saiu mais de casa. A vida feliz que sempre sonhara agora estava ali. Aposentado, tinha o tempo que quisesse para ler todos os livros que não lera e ver o que lhe viesse à cabeça. Algumas pessoas que se aposentam dizem que não podem ficar-se paradas; é porque são analfabetas, possivelmente. A poltrona confortável, o computador, as compras entregues na soleira da porta do apartamento e nada de gente. Esbarrar nas pessoas, disputar espaço em filas e na condução. Arre! Mesmo num apartamento cercado pelo lado de fora por pastilhas corroídas de poluição, há lugar sim para a natureza: eis ali, no canto, próximo à janela, um terrário. Há minhocas e tatuzinhos-bola. Para quê mais?

domingo, 7 de dezembro de 2008

Que bonitos ojos tienes (1/3)

pro Otavio Chamorro

Refeita na Europa, Guarulhos aguarda, passa os alibã picumã gisele já não faz a bombadeira: luxo, enche o pulmão, aperta os seios silicone sutiã, boa-noite-brasil, pega o táxi, o chofer aqüenda o retrovisor zalene linda o peito estufado, de salto e hematoma, não quero mais eurodeputado, Paraíso, Consolação, tá sônia braga na Ipiranga, bagagem no elevador, até aqui só no carão. Fica na casa da Jacira um dia, um mês, ou dez, amiga bowa, Milano sem você ficou frapê, tava com banzo, bato na porta, cadê? Senta na escada, espera, meia hora, tudas mala o chapelão. A campainha. Cadê Jacira? Uma hora. Quase indo embora e vê subindo uma desmontada, chorando louca. Colocada? Ela senta do meu lado, "você é amiga da Jacira?", me benzo, "que aconteceu?". A Jacira morreu.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Colônia de Fungos

Fungos cresciam na sua pele durante a noite. Acordava sempre com o corpo todo branco tomado pelo bolor. Já tinha feito de tudo. Dormia de cortina em lençóis esterilizados. Tomava banho de duas em duas horas. Por fim, trocou o dia pela noite. Nada resolvia. Passou a usar tubos metálicos no nariz para que a colônia não lhe impedisse de respirar. Já na boca usava uma bexiga cheia de farinha e muito batom pedido em revista. Certo dia resolveu dormir dentro da piscina. Três semanas depois já respirava sem ir à superfície e bactérias zinguezangueavam em seus músculos.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Diário de Estância, III


Que quantas filigranas se estendem entre ele estar morto e esta coca-cola desempregada! Por exemplo, a praça. Não sei de sua história. Mas o problema da História é justo esse, de uma vez que se começa, a coisa perde qualquer encalço de fim. A História não esgota nada. A Filosofia não esgota nada. Peter, talvez Peter saiba de alguma coisa, devo lhe falar antes que vá para Belgrado. Esta é uma página cega. Deu praia, não lembro dum céu assim azul, duma lixeira tão laranja. Dezembro. E passa o moleque-filho-do-jornaleiro, de bicicleta, falando alto sozinho, gosto do moleque-filho-do-jornaleiro. Eu também falava sozinho nessa idade. Estou pensando na seqüência final de “Yentl”, Barbra oferece ambos os perfis à própria câmara, depois desafia (frontal, alegre): papa, watch me fly.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

o poema sem título é do cão

Sou para mim mesma como um cachorro, às vezes o chamo de filho e rolo a bolinha vermelha. Nem sempre ele vai atrás. Embora no escuro vá me rangendo os dentes é um dócil e depois de latir rebola a cauda pras visitas. Passo semanas sem vê-lo enquanto na mesma sala empilho papéis, meus jogos de montar, enquanto ele, esquecido, dorme. Nunca a céu aberto, embora finja, às vezes, a loucura dos mendigos, não sabe suspeitar a chuva, nem nunca confunde trovões com estrondos nas noites de festa, quando soltam os artifícios. É tanta luz do dois olhos que dele no céu se confundem às vezes o fogo cão me cega e eu lhe sigo, em órbita, a lambida na minha mão, ternura onda a se criar sobre meu dedo. Volto a ter mãos, patas não.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O escuro

Palavras de meu pai explicando um enredo de Dylan Dog: "o advogado diz que o escuro é um reservatório enorme e infinito, depois diz que o escuro não tem começo e não tem fim, o escuro existe mas também é o nada, no escuro as coisas reais viram sonhos e vice-versa. Não é por acaso que a Kelly diz que o seu monstro é o escuro, as palavras em negrito, as próprias letras escuras mostrando a estranha dimensão na qual viajamos todos os dias. Então vamos comparar isso com o Soares. O Soares não sabe de onde veio, quer dizer, o passado pra ele é uma coisa escura. Ele foi até os oito anos criado pela mãe, a mãe morreu, o pai desapareceu, entregou ele pra alguém e sumiu no mundo." Epaminondas Soares era meu avô.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Cartão de Natal

Nada pior que ter de arrancar idéias às pedras. Penso nas pessoas que têm de obrigatoriamente fazer algo. Quer coisa pior do que, por exemplo, escrever um cartão de Natal, ou uma dedicatória de livro? O fulano fica lá, com uma "prisão de mão" na mão que não lhe solta nada. E aquele monte de chavões que vêm como abutres famintos buscar a mão e sair pelas pontas dos dedos ou por aquela da caneta? Passa, fora! Um pensa, pensa e pensa, põe os amendoins para funcionar, cerra os dentes até que os olhos fiquem vermelhos e o pescoço cheio de veias de um dedo de grossura. Finalmente a caneta se arrasta sobre o papel rugoso do cartão. Não, não é possível! Forma-se, a olhos vistos: "Feliz Natal e próspero ano novo!"

domingo, 30 de novembro de 2008

Atlas


Bandeiras distantes, países comprimidos entre os dedos, na cama de noite os pés no chão do mundo, rios talhados em vermelho, branco, traçava no mapa navios o ranger da porta na cama e o cobertor sendo puxado, continentes descobertos, a cada toque um medo em fuga porto deque dia claro só navega pro nepal, japão, o peso no corpo, no escuro, na china longe um bilhão de pessoas cheirando a cravos da índia famílias inteiras correndo perigo em mumbai em santa catarina o bafo de cachaça a mão rasgando as calças, a irmã chorando ao lado, pesadelo e latitude em vigília malásia mongólia maldivas tremores camboja espasmos de mapas molhados.

sábado, 29 de novembro de 2008

fineza

arrumar o quarto é uma necessidade vibrante que se estende sobre os períodos da vida de qualquer pessoa. objetos que há pouco representavam alguma possível renovação ou uso se desconfiguram com o que se chama de arrumação. o contexto decorativo de repente deixa de existir. nada escapa da fúria tremenda daquele que decide desempilhar e escolher. os objetos tremeluzem com o movimento de olhos subitamente acordados. a poeira se anima e colore a janela aberta, que nunca esteve diferente. um quarto é uma Nova sala. um quarto possui franca produção. note-se tudo o que ali pode mudar de lugar. arumá-lo muda o que está fora dele.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O verdureiro

Ele nunca falhava. Todos os dias passava no meu portão oferecendo sempre verduras fresquinhas. Eu ria e dizia que não era preciso. Já tenho minha horta em casa e estou muito bem com ela. Mesmo assim, todo dia ele passava aqui em frente. Um dia perguntou o que eu tinha na minha horta. Apenas alface, alecrim e cebolinha. Ele riu e disse que eu deveria levar manjericão, agrião e rabanete. Aceitei a oferta e desde então passei a comer menos as verduras da minha horta, já que tenho que adubar, regar e só depois colher. Com o verdureiro é bem mais fácil, ele já trás tudo crescido e pronto para consumo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Diário de Estância, II


Na confusão da mudança, alguém dependurou pançudo urso de pelúcia naquela janela de lá, do caixilho azul-turquesa. A noroeste, crianças pulam corda no pátio elevado da Escola Municipal. O que é próximo e circular. Visiono a passagem pela praça, ele enfia pelo último bocado da rua, esvaece entre as árvores. Sujeito curioso, você. Sempre pelaí, advogando o picadinho polifônico, o triunfo dos tabiques e murais, a distância. É preciso estatelar-se, sempre, maravilhosamente, não era isso? Agora você me senta num banco de praça, faz cara de vai-um, e o grande momento, como de hábito, não se dá (para um espaço comum). Ah, sim, ele veio, e um retrato é sempre perfeito, a despeito de si próprio. Naquela época eu tinha um emprego mas minha educação sentimental ia de mal a pior.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

transformator plus sonic

pro Érico
Quando digo que entre escrever e estar escrevendo existe uma separação é que com os olhos quase fechando escrevo com sílabas faladas e datiloscritas auditivas: "idade é uma coisa que se junta". Daí fico parada. Olhando uns segundos aquilo que de névoa escrita, vendo entender se faz . Sentido. Sempre foi assim. Com a diferença de que agora, quanto mais parece que não disse nada com nada, mais clara e separada de todo o resto é a frase. Pronta! - - - - - - - - - - Estou de azul. O gato rompeu o saco. A pá é amarela. No escuro da cozinha - queimou antes do anoitecer - não escuto mais o gato, nem a rua, nem procuro o poema do caminhão de lixo que ontem ouvi de madrugada. Agora não sou eu quem escreve mais.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Para o lixeiro

Um poema de Pessoa dizia algo, que era? Hoje não, hoje não posso, hoje é impossível, hoje nada. Mas acordo cedo, recolho um saco inteiro de cocô dos cachorros acumulado durante a semana, deixo o saco na calçada para o lixeiro que passa às oito horas, vou para a faculdade, saio com pressa, pego o metrô depois o estacionamento em frente à estação onde deixei o carro porque não teria tempo para um mínimo de tráfico que fosse. Dirijo para a terapia sem almoçar, em casa faço um prato e como em frente à TV, conversando com meu colega no horário que já deveria ser uma reunião mas virou almoço, depois uma hora discutindo um trabalho e não tomo banho, apenas passo um perfume forte, preciso sair, triste, seria francesa apenas por necessidade porque hoje não posso mais nada, nem tomar banho.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Cartão-postal

De acordo com o posicionamento da luz, os ambientes mudam completamente. Há decoradores que se aproveitam das vantagens luminosas em ambientes fechados, mas é artificial, como uma sucuri num vidro de formol: impressiona, mas não é verossímil. Outro dia, voltando tarde para casa, no metrô quase vazio, onde reina o sono e o cansaço sob a luz mortiça das lâmpadas fluorescentes, ergo os olhos e deparo-me, à esquerda, com o morro da Penha sob o manto da noite. No alto, a igreja nova, uma catedral maciça e volumosa, iluminada dum jeito curioso: na base e a luz a perder-se pelos torreões, a desfazer-se. O efeito de luz dava a impressão que a igreja placidamente flutuava e, àquela hora, foi verdadeiramente espantoso.

domingo, 23 de novembro de 2008

A parábola dos talentos

Eis que, viajando o senhor, chamou seus servos e entregou-lhes seus bens. E a um deu cinco talentos, a outro dois e a outro um, conforme suas capacidades. Partindo o senhor, os dois primeiros dobraram os talentos recebidos, mas o terceiro cavou a terra e lá escondeu o seu. Ao regressar, o senhor regozijou-se dos dois primeiros. O terceiro, no entanto, disse-lhe: "Senhor, eu conhecia-te e, atemorizado, escondi o teu talento. Aqui tens o que é teu". E o senhor disse: "Mau e negligente servo. Fica, pois, sem o talento, que será dado ao que tem os dez. Porque a quem tiver será dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem ser-lhe-á tirado. Lançai o servo inútil nas trevas; ali haverá pranto e ranger de dentes."

sábado, 22 de novembro de 2008

os desfilem atraem público

brega é uma dor muito exata, que já acompanha anos. só ele exprime e compreende uma certa desventura. ex.: uma festa ilhada como no Adocica. a Brenda: animo. eu animo. eu divirto. muito estilo, clube da fantasia. hoje não volta nunca. só quando um personagem surge em meu corpo humano: a rosa por acaso tem utilidade. POR ACASO ESCARLATE NO CABELO BEM. um retrair-se diante do que já foi dito: "rosa é para enfeitar". o que dirão do rosa-choque será pior. dor. é pura dor palhaça. o privilégio da piada, a ironia fechadíssima, mas penetrante-inconsicente. o carisma faltoso em conjunção com o impossível. uma espontaneidade maldita onde menos se espera: como quando no quadro escreveram sem querer algo que "combinou" com a roupa. e alguém disse que era feia. um presente oblíquo oferecido à minha pessoa.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

programa de vovó

Acho televisão uma coisa enfadonha. Antes que pensem que é birra aos avanços tecnológicos, já digo que não. Até porque, qual a grande tecnologia da/na televisão? A maioria das novelas tem a história parecida com as três primeiras que vi antes de ir para o colégio de freira no norte do estado. Acredito que programa de fofocas e receita é coisa de/pra velha que não tem o que fazer em casa. A vovó, aqui, é ocupada. Assistir a telejornal é coisa de masoquista. E a vovozinha, aqui, é uma dominatrix. Prefiro desligar a TV e viver a pornografia. É assim que volto do mercado sempre com o carrinho cheio.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Diário de Estância, I


Olá, Cláudio! Olá, gato gordo do Cantinella! Uns olhos, benza Deus. Naquela época eu tinha um emprego mas minha educação sentimental ia de mal a pior. O que vocês usam na moagem dos grãos: ouro? Meto o dinheiro miúdo no bolso de trás. Comecei as “7 Canções do Maratonista”. Mudei-me para o coração de meus nêmesis. Acaso tenho cara de por temporada? Viver próximo a uma praça tem das suas – a gente está sempre pensando no que é próximo e circular. As habitações dão para um espaço comum. Pensei que fosse escrever isso mais cedo, o céu estriado de: ouro? Será que ele também me larga porque eu bebo demais e não consigo parar quieto em casa? Isso está ficando enfadonho, todo mundo já viu esse filme. Privar é complicado, todo mundo já viu esse filme.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

sete pedaços de vento

Me escondo embaixo dos móveis à maneira dos abandonados. Não sei me ter. Terror do oceano mudar de nome enquanto durmo. E o gato que vem me lamber o focinho logo cedo. Levanto-me e é enorme. Toco as paredes. Escuto a água nos vidros. De estômago ouviria aquele dos Smiths. Mas tão calma, não te anuncio mais nada. Atrás do olhar há um olho. Abro as janelas para o vento entrar como se salgasse a terra pele do que vejo. Não mais pelas frestas, por toda a abertura o vento traz o mar a estrela e a morte e o espelho o amor e a memória e a casa e a viagem e a dor e a saudade o encontro a distância e a sorte o eco e a palavra é muito periférica para quem tem um corpo.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Crock

Não deu tempo de tomar banho, camiseta verde horrível, só vesti aquilo porque ia catar o cocô dos cachorros e estava choviscando e eles certamente iam me sujar. Além de horrível marcada na barra, a terra das patas dos cachorros mas dane-se, coloquei uma calça velha e saí. Sapatilha crock de borracha porque talvez chovesse de novo e quando cheguei na João Moura choveu mesmo, um temporal. Ia passar, chuva forte nunca demora, mas eu tinha hora marcada então deixei o carro no estacionamento, sete dolorosos reais, mas era o mais perto e eu não tinha guarda-chuva. Dobrei as calças e saí correndo, a chave na mão para abrir o portão bem rápido. Entrei, tirei as sapatilhas e deitei. Pela primeira vez naquele divã. Descalça, molhada e com as calças dobradas, não parecia perigoso.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Na estação de Artur Alvim

Banheiros públicos só devem ser usados em último caso. E o último caso é, algumas vezes, inevitável; como foi dessa vez. Foi no banheiro da estação de Artur Alvim, eu lavava as minhas mãos quando, aproximou-se de mim um mendigo esquelético e crostoso: olhou-me e sorriu. Lavou o rosto e a água desceu preta e cinza. Seu sorriso era uma miríade de cacos de dentes. Não se podia chamar aqueles fragmentos corroídos pela podridão de dentes. Encheu a boca de água, fez um bochecho e um gargarejo. Sorriu novamente e era medonho de ver-se. Mas nada comparou-se ao momento em que, enfiando a mão toda na boca, sacou de uma vez os maxilares, numa cena incompreensível. Seus dentes podres eram uma dentadura cenográfica.

domingo, 16 de novembro de 2008

Cadernos soltos

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Ele estava sozinho no meio do vento a dias.
A mulher enxugou as mãos no avental perguntou
"De onde esse pó que você diz repousar?"
Ele realmente não sabia. Espanou umas palavras vermelhas do ombro,
mais tarde viria a brisa
às seis o ar parado escurecendo a vista.
De noite o pó caía?

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sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Estrada do Galeão

Exatamente na hora marcada, ele chegou à porta do aeroporto. Me esperava no desembarque azul – internacional. Seria difícil ele entender que Vitória não fica em outro país? O carro só tinha duas portas, era pequeno e sem ar-condicionado. Desde quando carioca ignora o calor? Disse que foi de bom grado, mas porque era no Tom Jobim, se fosse no Santos Dummont, ele não iria. Alegou que não gosta de sair da Ilha pra nada. Tomei a direção de volante e joguei o lado dele do carro contra um caminhão de carga. Agora, ele vai dormir na geladeira do IML, no Centro, para deixar de ser mané.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

roubado

Os dias têm me parecido pêndulos enormes aos quais me agarro no jogo do corpo desvio vão nave nuvem. Vontade de afogar estas saudades loucas: pegar uma garrafa, soprar lá dentro e deixar ir pra costa onde for. Enquanto ergues a menina para ver o peixe-lua choro pelos livros que virão. Não sei, desfazer mesmo as árvores em papel? E no dia morrermos - - tudo se desfizer no ar das coisas e nossos objetos não virarem relíquias porque já o transformamos em relíquias vivendo e antes nossas coisas corpos incêncios dilúvios e esquecimento. Preciso trabalhar fora do mundo, dentro do silêncio das portas abertas, conveniência sua em me aceitar, lúcida- - erguem-se em direção aos rochedos cem gaivotas.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Melloddy

De repente ontem me deu vontade de escrever um diário. Diário de verdade, como eu nunca tive, em que se colocam os sentimentos mais íntimos. Só tive um diário na vida, chamado Melloddy, para imitar o nome do diário da Anne Frank. "Melloddy" não me satisfazia inteiramente, meio brega, mas os duplos eles e dês e o ípsilon davam um ar estrangeiro que quebrava o galho. Escrevi por algum tempo porque era um presente da minha mãe, não tanto para abrir o coração mas por uma ambiçãozinha infantil de ficar famosa como a Anne Frank, sem realmente perceber que ela era famosa porque tinha morrido num dos maiores horrores do século. Quando não tinha nada pra dizer, contava piadas ou desenhava as letras do alfabeto.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Letra comida

A cidadezinha de São Pedro do Monte acordou em pé-de-guerra: alguém tinha roubado uma letra do letreiro em concreto que anuncia a cidade, na beira da estrada. E ainda tinha deixado uma espécie de apóstrofo pendurado. Agora lia-se: São 'edro do Monte. Logo juntou-se um círculo de curiosos ao redor do letreiro e, não demorou muito, chegou o prefeito e tentou tomar as rédeas à situação e falou, tonitruante: "Quem 'oderia ser o vândalo que fez isso?!" Faltou um som. Foi o pânico, as pessoas corriam como formigas num formigueiro pisado. Antes que o problema se alastrasse, e mais letras sumissem, os habitantes foram evacuados para os ginásios das cidades vizinhas; doações para os desabrigados são bem vindas.

domingo, 9 de novembro de 2008

ATURDE SATURNO

Crer as pernas gordas largadas ao vento - dedos rechonchudos desenhando no ar - não vai chover por enquanto enquanto você estiver desse lado com a brisa na calcinha - refresco / faz bem ser assim tão despojada, sem o rascunho do colesterol nas veias. Quando eu era menina, imagine uma gorda jogando bambolê! Esqueça o antisséptico bucal, a domesticação dos dentes, eu vou te dar uma língua e um lindo abraço - dois minutos sem busca - a cintura rodando as estrelas olhos de orvalho no céu vão descer soltas / sem coreografia / amor o vapor do asfalto / gira sem pausa / estilhaça a água dos cabelos se as outras crianças correm pra casa - pros toldos - escreve telhados - aturde saturno - desembestadançar

sábado, 8 de novembro de 2008

a sua carta dizia: "chuva tantaque o vapor des-cansa". a chuva fora aqui de casa parecia the smiths tocando. meu braço, apoiado na janela, doía do teclado do computador. é uma dança contemporânea macabra que realizo durante o trabalho. de onde vem esse sadismo? pergunto vago. pergunto frio e vago: de onde eu tirei essa vontade de buscar a minha alma para fora. ninguém responde, claro. abstração do bailarino clássico! macabro sem compromisso com nada fora do movimento. sem represença. danço e falo comigo, com os outros, todos os dias, bom dia. agindo no mundo. a alma saindo me atinge. fica esperando a dor do braço passar.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Cerveja, por favor!

Não sei quem inventou que velho tem que andar com velho? Essas excursões da “melhor idade” me apavoram e me deprimem. Detesto ter que esperar as “amigas” que a cada dois passos, param para “tomar um arzinho”. Acho “o” fim, aquelas que não podem ver uma planta bonita e já querem pegar um muda. Se não cuidei de criança, lá vou cuidar de uma avenca?! Quando me aparecem com suco ralo e sem açúcar na hora do almoço, peço para morrer. Eu tomo é cerveja! E nem adianta me dizer qual é “o” segredo dessa torta de camarão com palmito. De-tes-to essa mania de cozinhar.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

gosto de títulos que confundem em vez de reiterar

A maior parte das cidades e coisas do pensamento não passam de bobagens, como quando o jornal você lê esquecido do Público e solta um aaah que bobagem. Já passa de meia-tarde, meu bem, e se empilham com ele todas as cartas postergadas, exemplares fátuos, para amanhã! brotando em papéis espalhados pela casa uma série de contas pra pagar, como a visão que meu pai teve menino, de grãos de areia avançando pelos cômodos, soterrando o corpo e arrastando para fora o grito de um coração em degelo. Clarisse me disse uma vez, abrir a pancadinhas o peito, e por trás do craquelado, nascendo da mesma brotação que gerou o errado, aparece o coração, não mais encalacrado, livre. Mas me pergunto, se disperso, o que fazer com ele?

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Chão de lajota

A casa tinha dois quartos e um chão de lajota, gelado de doer. O inverno foi chegando, eu dormia em cima de um edredom, sabia que precisava comprar mais coisas mas o dinheiro era pouco e fiz a seguinte promessa: se o Gabriel ficasse comigo, eu comprava um colchão. Comecei a relacionar minhas compras coma a evolução do nosso namoro. Se ficasse solteira, eu pensava, preferia usar meu dinheiro com coisas mais importantes, como roupas, cerveja e pizza no bar da esquina. Mas se ele quisesse namorar comigo, então eu podia abrir mão de algumas baladas e comprar um colchão, um travesseiro extra, uma xícara a mais.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Sobre o que lhe disse o oculista

O oftalmologista disse que ela não enxergaria mais direito; seu mundo se resumiria a borrões desfocados da realidade, certas coisas muito miúdas e alheias ao cotidiano, seriam, logo, invisíveis. Principalmente aquelas minudências que fogem ao pente grosso da vida: sensibilidades, boas maneiras, alegrias, pensamentos questionadores. Então, pensou, não seria exatamente uma doença, mas uma bênção; de quanto sofrimento inútil não lhe livraria essa imprecisão óptica progressiva? E havia a possibilidade do apagamento passar aos ouvidos e à mente. Só um detalhe, esse sim, importantíssimo como nenhum outro o é: havia coisas que manteria nítidas: as ranhuras das moedas e as minúsculas impressões nas cédulas do Banco Central.

domingo, 2 de novembro de 2008

Previdência

Era o tipo de marido que não tinha vida paralela, somente calma, contentamento e um emprego muito bom. Casou-se com uma esposa de peito chato, escondida atrás de óculos e um mestrado. Quem precisa de contrapeso? Juntos, tiveram um filho pouco viril e acordavam todos os dias por volta das sete, quando o sol já estava seguro suspenso no céu e a empregada já estava em casa fazendo torradas. Um dia arranjaram um cachorro, que cresceu e tornou-se um grande corpo preto e vivo no quintal. Chamaram-no Átila. E a empregada passou a limpar, diariamente, enormes montanhas de bosta que Átila despejava deslizando prazer. Sobre patas firmes, sem pensar no depois.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Avulso

Não, não mia. Essa voizinha fina me corta a onda. Pára! Me arranhar desse jeito vai me deixar marcas e eu amanhã vou pra praia com minha mulher e filhinha. “Papai, por que suas costas estão vermelhas?”, não quero ouvir de uma criança de 5 anos e um olhar fuzilante de uma de 39. Pô, não mordisca. O mamilo sempre dói muito depois. Ih! Olha esse miado de novo. Quando disse que gostava de gato, estava falando do seu rabo! Isso mexe bem ele, mexe!

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

passo o dia escrevendo mensagens

Salsugem e marulho. Palavras? Bartolomeu Dias dobrou o cabo Adamastor e morreu na volta. Escuta, pega isso aqui, é pra você. Pediram pra que eu lesse se a salsicha era sadia, porque eu não sei ler. Fiquei mal, foi um impacto. Eu devia ter me sentido inútil? Ah, vou com a amigôna-de-sempre ver o mar, óculos escuros contando: há correntes marinhas que vem da outra beira do mundo, para oxigenar o fundo escuro, dar espécie àquilo que agente chama de vida. Na tapioca pedi queijo. O homem riu tá apaixonada! As mussarelas dos corações movimentados? Minha mãe sempre pede de queijo; está sempre apaixonada? Confio na sabedoria dos ambulantes.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Maior que a cadeira

Assistindo a uma palestra sobre o currículo dos cursos de cinema, vou percebendo o degrau. O rapaz talvez tenha a minha idade, pouco mais de trinta anos, muito alto, loiro, bonito, maior que a cadeira e algo curvado, tímido porque provavelmente quer ser respeitado por seu trabalho e inteligência, não porque é alto, loiro e bonito. O nome soa longinquamente familiar e eu penso, será que o conheci quando era adolescente em Curitiba? Teria sido meu colega, quando eu morava com minha mãe e achava todos na escola, e por extensão na cidade, idiotas? Então ele diz, ele que nunca saiu dessa cidade que me envergonhava, nunca veio para o coração do país nem teve aulas com nossa elite intelectual, ele diz algo que faz sentido.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Sobre a guerra

Durante a guerra, a guerra em si não chegou por aqui, mas também não deixava que nada chegasse. As roupas, as fazíamos com os sacos de farinha, sempre com o cuidado de tirar a impressão a tinta (as crianças não gostavam e implicavam em vestir as peças feitas dos sacos). Faltavam ferramentas para o campo, embora os nacionais sempre pedissem trigo e trigo e homem. Nosso irmão retardado foi convocado (quase não perdoaram ninguém). Era uma boca a menos para alimentar num período difícil e, que morresse então pela pátria! Suas roupas, as demos para o irmão imediatamente menor. Tudo ia bem, até que o Exército nos devolveu o retardado, pois gritava toda vez que ouvia um disparo.

domingo, 26 de outubro de 2008

Dona Dulce

A homeopatia vai te salvar de ser assim tão preguiçoso, o menino só come macarrão, se tem couve não come, se tem fruta não come, não é à toa que tá assim tão gordo, olha mãe você tem que parar de mimar ele, já tem quase trinta anos, culpa da mãe dele que criou desse jeito, abre uma caixa de leite condensado e grita com a vó, mas foi seu pai que falou pra eu não deixar, velha e vivendo pro filho viúvo, quando eu fiquei viúva fiquei tão aliviada, meu pai morreu por cinco meses definhando, marcou uma consulta, meu neto, doutor, não tem quem agüente, eu não costumo receitar para terceiros, cinco gotas por dia no café-da-manhã, ela vai lá e mistura no sucrilhos, ele não vai nem perceber.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Sessenta e três portas

Escolheu o topo de um prédio abandonado de 60 andares para dizer que não me amava. Pensou que eu me jogaria e não contava que o prendesse na escada de incêndio. Todas as portas estavam trancadas, informei antes de pegar o elevador para o térreo. Ele gritou e pediu uma saída. Angelicalmente, eu disse que abriria uma das sessenta três portas, incluindo as dos andares de garagem. Ele teria 20 minutos para encontrá-la. Se fracassasse, eu a trancaria, abriria outra num andar aleatório e diminuiria o tempo em 5 minutos. Depois de duas rodadas, peguei um táxi e fui embora. Sem deixar nenhuma porta aberta.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

encruzilhada: à esquerda

da janela laura agora vê um pé de louro. mora a dois quilômetros de uma cidade pequena. na rua das almas perdidas - e esse é mesmo o nome. e laura desapegou do asfalto. tem um colchão em casa, talvez uma mesa e duas cadeiras, só. me disse que quando a garrafa azul acaba, ferve a água que vem da cisterna e depois congela e depois ferve outra vez e congela e descongela e bebe - transparente, sem cimento. laura agora é mais laura do que nunca, pode usar todo o tempo do mundo de um dia pra olhar o quintal. laura pode escrever o quintal e as estampas das roupas secando. tendresse: tatuado perto da cicatriz. love me tender: escrito no guardanapo, desenterrei do baú, de dentro do primeiro caderno. preciso muito visitar - laura.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

22 de outubro

Acordei que só lembro dos negativos. Fica um tempo aqui curtindo. Tipo quando você chega num fim de mundo qualquer, no sertão, em si. Você vê aquela graminha que sobe ou uma terra muito seca e se diz "cheguei", onde ninguém nunca me viu chegar. Na noite que vem dorme um pouco menos pra ver se volta na ponta dos dedos aquela sensibilidade cristalina de uma pedra. Dedos de grafite. Se é pra endurecer vou começar pelas digitais. Duas palmas me deram. It's like the world's end of the begging. Alguém mais quando ouve Tomorrow never knows vê gaivotinhas pedindo: me ajuda mãezinha? A minha quer que eu volte pra análise. Recomeço um diário. Vermelho. Fico observando o silêncio das coisas. Fracasso semanalmente.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Uma sessão

Durante quatro meses fui ao seu consultório, depois mudei e precisava pegar dois ônibus para chegar ao prédio, além de caminhar quinze minutos entre os pontos. Expliquei como era cansativo e perguntei se não poderíamos diminuir uma sessão. Ela disse que não. Enquanto me tratava, ela cumpria um estágio de sua formação em psicanálise, as quatro sessões semanais eram parte da carga horária. O transporte público de São Paulo me pareceu pior que a depressão e respondi que preferia parar. Ela insistiu e foi talvez enfática demais, nosso diálogo ficou agressivo até que ela percebeu suas próprias mãos agarradas à cadeira. Então disse a única frase honesta nesse caso: "a escolha é sua".

domingo, 19 de outubro de 2008

Silêncio

Ela foi procurar uma chave de fenda para consertar a panela de pressão e, no fundo da caixa de ferramentas, encontrou o diário dele. Uma coisa tão feminina, um diário. Ela tivera um apenas aos quinze e não durara um ano. "O que eu mais queria era aprender a tocar clarinete", e em outra página "Hoje eu vi girassóis". Você queria confissões, traição? Ela esperava. Mas havia apenas anotações que ela jamais imaginara ouvir dele, em quarenta anos de casados e ele sempre fermentando aquele silêncio que ela aprendeu a ouvir como falta do que dizer. "Eu gosto de açúcar", estava escrito. Quando ele chegou em casa, ela o olhou de longe; ele não notaria nada de diferente. O caderno estava no lugar e ela não ia tocar no assunto.

sábado, 18 de outubro de 2008

fiz uma coisa / de que tenho vergonha. falo demais. falei disso ontem, sozinho. falei sozinho. dentro do banheiro, em pé, demorei a sair, anotei: falação. as palavras parecem ganhar vida própria — blá blá blá — se movimentam, trocam de lugar / da voz à audição / vibram / algo monstruoso / cresce / diante de quem profere / sobre a mesa / a matéria fala / declara / uma infinidade / se mescla aos ingredientes / às bebidas / ao cigarro/ a fala gostosa / a fala satisfeita / e vária / voltando pra casa, murmura /e aos poucos esvazia / esvazia o sentido / da síntese.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

sem espuma

Não sei quem inventou que velho tem que andar com velho? Essas excursões da “melhor idade” me apavoram e me deprimem. Detesto ter que esperar as “amigas” que a cada dois passos, param para “tomar um arzinho”. Acho “o” fim, aquelas que não podem ver uma planta bonita e já querem pegar um muda. Se não cuidei de criança, lá vou cuidar de uma avenca?! Quando me aparecem com suco ralo e sem açúcar na hora do almoço, peço para morrer. Eu tomo é cerveja! E nem adianta me dizer qual é “o” segredo dessa torta de camarão com palmito. De-tes-to essa mania de cozinhar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

do verbo: escorrer

ai, esse calor tá. imagina um brisa atravessando esse ar parado – esse bloquinho sete de texto aqui – essa coisa que tenta ser uma coisa, mas. vai começa termina derrama quente na página, esvai. a brisa entrecorta os espaços entre asletrasaslinhasaspalavras, o espaço em branco é uma janela – imóvel saudade – nesse calor de não suportar. eu olho ao redor das manchas e me contenho. me contento com a promessa interrompida no ar. com a temperatura eu não me dou muito bem. justifico o texto, ignorando aonde o espaço quebra________ fico sem vontade, o corpo muito pesado e os desejos guardados na juntas dos azulejos brancos lá da sauna selva desfeita de letras s u o r

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

os anos 90

Nunca soube bem em que galho se prender, quem ser. Olhava a goiabeira debaixo, manchado o tronco, uma formiga subia, outra formiga. As meninas deitadas perto numas trancinhas, tererê, falavam falavam e do campinho vinham correndo vários, o pó que pisoteavam da terra grudava no all star de zíper, enquanto eles descalços pulavam na árvore feito um gancho de cedilha, balançavam, e tchibum, no Indijussara. E o menino lá, duvidando não digo, levando o salgadinho do pacote até a boca, mastigava um futuro contemplativo. Sentiu uma fúria. Descabida? Precisava ser. Pra volver, deu passo pra trás, AAAAH, a Letícia berrou. Pisava nos astros distraído. Capricho.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dor no estômago

Estranho sentar na frente de um desconhecido e explicar suas angústias como se fossem uma dor no estômago. Mas o psiquiatra tinha um olhar compreensivo e falei da melhor maneira que pude. Ao final ele disse que minha depressão era mesmo clínica, não era uma delusão qualquer de minha mente autodestrutiva. Ele podia me receitar um remédio, se eu quisesse, e achava que psicanálise poderia ajudar. Fiquei um pouco decepcionada e ele perguntou: "Você esperava que eu dissesse algo além disso?" Esperava, talvez. Quando tive escoliose na adolescência, o ortopedista só me mandava fazer natação. De certa forma isso me parecia pouco para um médico.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sobre a arte de pensar

Não existe ausência na linha de pensamento, exceto a interrupção definitiva causada pela morte; mesmo nos momentos de lapso, a linha envereda pelos bosques da dúvida. E a nossa linha de pensamento tem de guiar-se por prioridades, ou qualquer nome que dêem às urgências diárias. Quão difícil é desviar-se e desfrutar de um sadio e bem-vindo ócio. Escutei a voz de um velho ecoando, que tinha trabalhado todos os seus setenta anos de formado e que a função da vida - e por conseqüência, do pensamento - é o labor. Labor omnia vincit, disseram as letras feitas em madeira ao lado das fotos dos formandos. Tenho dúvidas se uma longa vida dessa permite pensar, ou omitir-se de pensar.

domingo, 12 de outubro de 2008

Impróprio

Ele tinha uns trinta anos e nem era bonito, mas tinha um peito que parecia muito sólido e macio e usava roupas que favoreciam. Aquele não devia escrever pornografia. Era o professor de informática do colégio, imagine o tipo. Eu escrevia. Dos meus cadernos saía tudo quanto era fluido - e uma parte pequena, mas considerável, seria dele, a pele escura sob os tecidos de algodão, uma tensão nos ombros que denunciava que ali havia sim um corpo, os meus cadernos sabiam. Depois de uns anos fiquei sabendo que ele teve um tumor no cérebro e morreu em dois ou três meses, de repente. Ficou muito puto e não falava com ninguém, morreu sozinho, nem tinha família. Ah, e dessa você vai duvidar: ele desfilava no carnaval.

sábado, 11 de outubro de 2008

bethânia foto

peguei no chão da sala o papel amassado e li. abri um buraco com o indicador furei a pauta azul-claro - o fundo branco sumiu. abriu-lhe olhando. o mundo - um buraco a mais atravessado. o fundo mudo do papel / furado. só mais um. quem anotou não achou. e buraco - uma forma tão nova - tão essencial. possuído decreto na sala 3 retratos: 1 agudez da janela; 2 senhora pairando; 3 lira fria. e no bar mais 3: 1 pontual abismal; 2 queridíase; 3 disque parede. ninguém viu ou sabe. decoração fotógrafa. na sala havia inúmeros porta-retratos, uma moldura contrasta cada situação, fotos da mesma família. no bar, times de futebol além das câmeras digitais.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

(toda hora eu venho aqui troco o título)

acontece que desaconteceu um negócio comigo outro dia aí pra trás. e tem desacontecido isso direto. tenho alucinado pra dentro até de repente tudo ficar branco na memória. as sete linhas presas no pensamento inibem os lapsos físicos das letras no papel. às vezes decepciona - mas quando estou na rua: desorientación total [[ [ abrem-se todas as portas batendo no vento. tanto - que tenho alucinado pra dentro do estômago e pra fora de alguma coisa. tenho sido tantas vezes tudo sem completar / sem absolutamente
fico esse peso parado no ar. esse pulso flutuante. a beirada do precipício. e Saturno lá no alto - seilá.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

sala de aula

Agora o cheiro do halls vermelho, que guardei no estojo porque o professor gostava e a professora falando do bambu. Atrás do bambuzal o Luís lambendo a Jamile na boca. Tinhamos 7 anos. Tudo tão fluído no halls e em mim aquele peso. E as palhas secas, os tênis amarelos, o mundo estalava. O Luís era rude e babava. Tem aranha no bambu cobra também. Mata. A professora disse que o bambu quando morre continua firme em terra por sete anos, rígido dentro da terra. Vivo, ou enquanto isso, o bambu migra verde até virar azul. Lá em cima o céu devolve o verde. Há gaivotas na China? Depois senti muito cheiro de gás na sala de aula como se o gás viesse de mim. Fechei a janela, os olhos, pensei em como aprender um corpo no escuro?

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Aretino

No jornal de domingo havia a foto de um professor carioca demitido porque escreve poemas eróticos. Um artigo denunciava a volta do autoritarismo, caça às bruxas, por que ele não poderia ensinar alunos de quatorze anos e escrever aquela espécie de pornografia culta inspirada em Aretino? Me espanta o início da história, mais que o desfecho. Havia uma feira cultural na escola e convidaram o professor para falar de seu processo de criação. Ele falou. Depois da palestra os alunos procuraram no google e encontraram os textos eróticos. Quem o convidou não havia lido os livros. Ele fez a palestra acreditando que os outros sabiam e entendiam? Ou nem sequer pensou que haveria um problema?

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Sobre as eleições

Caros senhores camaristas, tenho o prazer de vos informar que todas as urnas já foram abertas e apurados todos os votos e, para nosso bem estar, fomos todos reconduzidos como representantes legítimos do povo. Não que essa eleição não tenha sido manipulada, afinal, a manipulação faz parte da nossa natureza, desde a época em que controlávamos a maquia dos moinhos e e quantidade máxima de cera a ser usada no tratamento dos mortos. Manipulamos, mas agora, nossa manipulação é honesta, porque é visual e não coercitiva. Sehnores, nosso reinado está garantido pelo século dos séculos, enquanto o mar não nos toque a borda do campo. Não, esse último trecho não vai para a ata, por favor.

domingo, 5 de outubro de 2008

Clark Kent em apuros

Clark Kent acorda neste domingo mais cedo que de costume, veste a mesma roupa de ontem à noite, não sabe bem onde está. Aos poucos seus olhos vão reconhecendo o ambiente, seu quarto, Metrópolis pela janela, e Clark tem a estranha impressão de sentir algo de que o sol amarelo sempre o poupou, algo de que ele apenas ouvira falar, uma leve e aguda dor de cabeça. Bobagem, Clark. Você deve estar é mascando ainda algum sonho esquecido, porque o sol amarelo não lhe extirpou o inconsciente, ou lhe deu um de presente, como seria sonhar em Kripton? Seus pés fortes escalam até a cozinha, sua mão agarra um copo de água que ele bebe e estraçalha, sem se cortar: afinal, ele é o mesmo! Não fosse por uma vaga, vaga melancolia.

sábado, 4 de outubro de 2008

rebelde fofura wasted brazilian youth outro-retrato 2

intro: o meu carro foi meu pai que me deu filho homem tem que ter um carro seu - QUADRO 1: outra linha, a seguinte leitura: os pasi se matando de trabalhar para que os filhos em cima da cama leiam horas e horas LIVROS. e a escuela, paga clara - 2: filhosi crescem, formam na escuela, na faculdade, alegria alegrí! formandos formados, o contínuo movimento dentro de casa - trabalho - dentro de trabalho - para casa - processo do conforto: obter a propriedade própria independentee. independência: continuar a ler LIVROS e TER ACESSO À WEB. viu, xixi? escolher bem. depois vai virando, ó: (imaginemos) fazendo barba, ou depilando, os dias passando, os fatos derretendo, o frita-peito, o quebra-espelho, os livros abrindo e abrindo e fechandop, shh, um suspiro e outro - 3? não pára não nem conta

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

o projetista

Nos conhecemos num dia que eu entrei no cinema para me abrigar da chuva. Ele recolhia perfurava os ingressos enquanto as pessoas iam entrando e depois corria para a sala de projeção. Achei o “tenha uma boa sessão” dele tão carinhoso que antes da metade do filme já estava em cima dele. O som da bobina abafava nossos gemidos. Tínhamos que ser rápidos, pois era um média metragem. Passei a ir lá toda sexta-feira. Às vezes ajudava ele a fazer a fila andar mais rápido. Detestava mostras de curtas, mal começávamos e ele tinha que parar para trocar o rolo. No dia que teve retrospectiva de “O Poderoso Chefão” quase não tive descanso e a rodada entre o Um e o Dois só perde para o dia que estreou “Dogville”. Amava os clientes que viam os créditos finais.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

eu como você

já mudou de idéia novamente então tá não,tá tudo bem se você quiser eu não paro meu amor tortura quantas dúzias de dúzias vermelhas querem trazer pra cá você meu na porta de casa agulhão peixe-grande que dá no norte tem bicada feito de cegonha se olhar na lua cheia dá três filhos pra cada verruga da velha do seis chega de andador choveu granizo nela um dia eu também não vou partir pra nunca mais prometo vou ficar pra sempre jogando i ching dando comida pros gatos não que nem a velha nunca já tive bem,não era azul aquele rio era lilás que nem na música e a ponte nos teus olhos refletida de abril a ponte não o mês era outubro agora disse uma amiga e eu xorei litrus.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Chegou ao portão

Não lembro se disse exatamente: “fazer amor”. Eu não conseguiria lembrar as palavras exatas, foi alguma metáfora. Ela contou que estavam na aula de música, todos sentados no chão. Alexandre sentou ao seu lado e fez o convite. Queria encontrá-la depois da aula. Ela disse não. Ele respondeu “Então fica pra sábado”, mas falava baixinho por causa da professora e ela entendeu “vamos sair abraçados”. No fim da aula andou devagar pelo corredor, esperando que ele viesse abraçá-la, mas ele não apareceu e quando chegou ao portão ela o viu já na esquina. Ele gritou: “No sábado, então!”, e foi embora com os amigos. Foi então que ela percebeu que tinha confundido “sábado” com “abraçado”.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Sobre o esquecimento

A sensação de sair de casa achando que deixou algo para trás, mas não sabe o que. Confere: carteira, certo; celular, o maldito, está aqui. Crachá (a sineta do gado corporativo) também está aqui. A chave de casa está no bolso, o bilhete de ônibus também. E as mãos continuam a revirar cada dobra da roupa onde pode haver algo necessário e essencial. O livro, o pen-drive, as apostilas. Pus meias? E ergue ligeiramente a perna da calça para verificar. Caralho, que está tudo aqui e não consigo pensar em mais nada. Chega o ônibus e fico com a irremediável sensação de que deixo algo para trás. O trajeto prossegue e, quando consigo sentar, no último ônibus, percebo: esqueci-me em casa, dormindo.

domingo, 28 de setembro de 2008

Caravana da Anistia

Durante o Estado Novo o pai tinha tido suas desavenças com o governo, era funcionário público e uns anos antes até pertencera ao Partido, mas tudo ficara para trás. Agora era o filho, sumido e ninguém sabia dele. Metido em passeatas, panfletagem. A família não sabia se fugia do país, se escrevia para a ONU, a mãe chorando o dia inteiro, não deixavam mais a irmã sair de casa. Anastácia, a empregada, continuava cozinhando. Ninguém lhe contava nada, podia ser perigoso, para quem? Mas também, ninguém sabia que a mãe de Anastácia era alforriada, que a avó viera de navio e ninguém saberia que sua filha, anos depois, também faria faxina. E cozinharia com os mesmos temperos fortes e bons, apesar do rapaz morto.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

o porteiro

Ele não era bonito, mas dizia que me amava e nunca deixava eu pagar a conta. C’est sufi, pensei. No nosso primeiro encontro, ele disse que ficou surpreso que eu tivesse retribuído o olhar e mais ainda o beijasse na boca. Só lembro de passar minha língua em seus dentes para ver se tinha todos ou pelo menos os da frente. Nunca pedi para que ele tirasse o boné. Na verdade, que ficasse totalmente pelado. Ele não usava cueca e isso já era intimidade demais. Eu interfonava e ele subia. Nem sempre eu abria a porta, mesmo assim ele nunca deixou de ir.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

caligrafia esquece

não tenho escrito quase nada. tenho mais é observado o desenho das letras. e as pessoas dançando, enlouquecendo. tenho reparado nas hastes, nos olhos das letras. tenho até deitado nos ombros delas, nas quinas dos ápices e dos vértices. mas a verdade é que não tenho escrito quase nada. tenho passado pelos dias dançando enlouquecida pra fora da entrelinha. tenho observado a velocidade que atravessa as horas e não pára nunca de abrir caminho da boca ao coração - da boca ao coração, nesse movimento repetido e esquecido mil vezes por todos. tenho reparado no corpo do a. na lágrima que cai do a, no silêncio que tem dentro do olho do a, e no próprio a. e me detenho aí, minuciosa e rasante.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

tirar um retrato que me desabafe

Continuo na chave do inominável. Aquele que não abre nenhuma das portas da minha realidade. (Realidade é o que caminha em mim.) À mão que afaga este problema a materialidade dos livros ajuda. Quem os vê assim, juntinhos, pensa até que são organizados. Quem se oferecer a abrir um a um sem fastio (não eu, ) e olhar direito também vai encontrar umas séries zinhas de palavras como essas que, próximas e encadeadas, se parecem com algo que já se conhece e portanto: são. Uma língua, uma história, uma engenhoca. E quando acontece da gente perceber que está vivendo mais uma vez algo que se parece mas não é? É só um laço, beibe, de fita, não aperta nenhum nó antes da última hora.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Um disfarce

Às vezes tenho medo que fique evidente, quando escrevo, a influência dos professores da universidade. Por que o medo? Foi a revelação de um segredo para mim. A primeira chave: não diga as coisas. Escreva de um modo indireto para que o importante não seja mencionado e esteja apenas criptografado nas ações de superfície. Depois percebi que era meia verdade: porque a ação de superfície precisa dizer algo. Não basta esconder o principal, é preciso construir um disfarce aparente, um disfarce que faça sentido. A segunda chave: compreensão do mundo. Essa compreensão pode estar equivocada e novamente aqui acreditei nos professores.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Sobre estradas e verduras

Dar aula. Dar aula longe. Dar aula muito longe, um lugar que exija vários meios de transporte para esgotar setenta quilômetros. E pensar que entre a cidade grande e o vilarejo promovido a estância à força, há lugares sem energia elétrica. No meio do caminho, repolhos e acelgas vicejam sob o sol e à beira da estrada. O ônibus rodoviário desliza suave na rotatória; desço. Ando da beira da cidade ao centro em cinco minutos, em subida plena; a escola, ao lado do cemitério. Bons-dias. Os alunos não vieram. Tomo um café e penso na vida, na volatilidade das coisas. Pego minha bolsa e começo a fazer o caminho de volta de três horas, por três cidades e setenta quilômetros.

domingo, 21 de setembro de 2008

Arbeit macht frei

Benedita estava começando a ficar com fome. A patroa tinha encomendado a marmita, que só chegaria à uma. Era meio-dia. Se começasse a lavar o banheiro, que era imenso e estava bem sujo, terminaria em uma hora e poderia então comer. Mas dava-lhe uma gastura pensar em comer depois da água sanitária e ela não sabia como é que era essa marmita. A prima dissera-lhe que essa patroa era muito boa. Mas Benedita não ia com a cara de patroa nenhuma. Umas nojentas, todas. Vale ressaltar que este blog só sobrevive graças à diferença salarial. A sua faxineira não entende alemão, entende? Benedita não entendia. Mas sabia muito bem que o trabalho é só um meio. E que tudo o que há é marmita que pague.

sábado, 20 de setembro de 2008

feriado (auto-retrato 1)

ou o tempo que sai e cai e desemboca e depois vai indo e de repente zzz. ou: a face parda embaralhada de dia foi/ foi minha vida minha casinha. o programa desligado desligou, assim, meio no escuro, a rapaziada deitada chão chão chão. o lado frio que fiz saiu e caiu e desembocou / a boca flanando horrores. foi e furou. abriu brio. fino/ fulgor/ físico/ trato. faísca fadada enrolada. pura enrolação, aliás. me chama que eu vou. FIM. papelzinho: ligar e descobrir que dia começa. firilice, aquelas idéias, se cortando/ na lâmina a fé partida, mil pedaços, farelo, fatia de fé/ todo um enjoamento libertário por água abaixo agora/ agora vem uma espécia de texto, que não se declara/ a declaração é um chato/ o contato, um buraco - aberto, descontínuo, no meio dos outros _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O gato da Rainha de Copa

Minha primeira atitude foi arrancar um a um os dentes dele. Os mais duros quebrei e deixei apenas a raiz. Um bom copo de coca foi minha sensibilidade na hora de lhe matar sede. Finalmente tinha retirado do rosto dele aquele sorrisinho que acha que resolve/consegue tudo. Dois dias depois, ele me disse que estava com fome através de sinais. Sempre usou os dentes na hora de falar e agora sem eles não sabia como. Ofereci um jantarzinho light: salada crua de cenoura, beterraba em rodela e brócolis temperados com vinagre balsâmico. A sobremesa: maçãs verdes. A minha segunda atitude foi cortar cada um dos dedinhos dele. Volta e meia ele enfiava onde não devia.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

onde há calma nem sempre pode haver movimento

Dizem que viajar liberta. Eu vi o mundo? Passei por aqui e não reconheci um pedaço. Outros sítios pelos quais não estive quebram a totalidade inviável. Estou quebrada em pedacinhos, mosaico do que vi. E não estou mais livre. Não vi a lua. Sou um mosaico por montar dentro de uma caixinha. Mas não estou empoeirando embaixo de uma cama, nenhuma bota me pisa e o seu lobo não vem. Estou cá na rua, a tomar chuva entre os Antunes e as namoradas dos Antunes. Não sei se já fui uma delas. Mas muitas vezes estive entre elas. Um dia aprenderei a deixar de me sentir um vaso, em cima de uma lareira que nunca se acende, este sim, coberto pelo pó de um fogo antigo.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Selênio

Como ele consegue viver com um corpo tão magro? Sua pele tem cor e textura alteradas por causa do remédio, ele sabe que sim, ele me disse. Um papel fino que poderia romper. Entretanto ele sobreviveu a muita gente. Os dentes doentes, os olhos, o sistema digestivo. Teve uma grave depressão e voltou à psicanálise, contra a vontade, não queria retomar os mesmos assuntos. Eu disse: é possível falar de seu trabalho. Tudo não se reduz à primeira infância, você não está fugindo, a vida é mais complexa. A amiga naturalista diz que não, a depressão pode ser causada por deficiência de nutrientes, selênio, magnésio, tungstênio. Isso não é místico demais?

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

La lluna

Eram quase onze horas de uma noite quente entre Natal e Ano-Novo. Tínhamos escolhido fugir para cá, para a Vila de Paranapiacaba, porque é tranqüilo. Andávamos com a maior calma do mundo e era já tarde da noite, a luz branca da lua cheia fazia com que os vagões carcomidos fossem recifes de coral. Na passarela, quando voltávamos à pensão, ela segurou minha mão e boiamos no vago azul profundo. "Que pensa você?"; "Penso na lua, essa lua, 'que passa entre todos os séculos e os teus olhos'". Subimos a rua de paralelepípedos e das casinhas de madeira parecia sair uma musiquinha suave de oboé, de todas as casas. À porta do seu quarto me despedi e fui para o meu. E a lua, por uma fresta da madeira, não me deixava dormir.

domingo, 14 de setembro de 2008

Pão de Açúcar

A professora do Fundamental I disse que esta será uma semana fria em São Paulo, com os termômetros atingindo os dez graus negativos. Ontem mesmo, de madrugada, a Paulista estava um gelo. Uma garoa pesada empapando as nossas roupas depois que saímos da travecagem na casa do Fabinho. Fazia muito tempo que não via ele nem Victorety, que me perguntou sobre a viagem ao Rio e disse que ficou mais um dia em Copacabana. Eu, desde que voltei, sinto que nem fui. Vi o Cristo de soslaio e o Pão de Açúcar da janela do ônibus. Quando cheguei, parece que São Paulo já estava aqui bem antes de mim. Desde então não parei de trabalhar. E vi minha mãe só uma vez, no dia em que nossa cachorra morreu.

sábado, 13 de setembro de 2008

uma rosa é uma rosa (auto-retrato 0)

uma rosa que parta daquilo que não é – uma rosa do nada. um esvaziamento no fundo do quintal – no muro concreto encardido pessoa agachada não quer entrar. disseram que era inútil. devo chamá-lo? disseram: é um inútil. eu certamente também. todos na sala sem dúvida entenderam como era, sim, inútil. vinte e poucos anos e aquela bagunça no armário, e uma responsabilidade só. e por que fazer letras, por que não jornalismo? desisto de conversar e me recolho na poltrona. rosa. o espinho sai do caule, que é uma conexão útil. o pensamento é um espinho que se direciona ao encardido. a família é uma saliência que se direciona à terra molhada. o desabrochar de uma rosa é uma ironia leve. o sujeito no quintal olha para a parede. observo as espáduas masculinas abertas.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

se

antes de antes de antes de antes de ontem: a imagem do poço / o abismal, a água / pode-se mudar uma cidade, mas não se pode mudar um poço / quando se chega próximo ao nível da água, mas a corda não vai até o fundo __ antes você não tivesse medo desse horizonte no
mar_________________________________________________________________
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quarta-feira, 10 de setembro de 2008

escolhe uma amor, escolhe

A verdade é que pensei tantas estratégias de te trazer ao meu encontro que essa de dizer a verdade talvez também seja uma estratégia: tipo: o mar avançava dois metros e os holandeses avançavam dois metros sobre o mar. To viva gente, escrevendo essa quarta so pra mae nao se preocupar comigo, ta? Briga comigo nao, M. Tem uma coisa que me impede de escrever. Como se houvesse agora nessa sala em Paris uma coisa entre eu e escrever. Porque fui construindo essas duas linhas em paralelo (/ /). De repente acordei que essa pessoa tà separada. Dai vou dormir tipo é inevitavel inevitavel- exclamo. Duas agulhas com uma so linha: hei de voltar. De repente so sao linhas; dorme coraçao agitado, volver Lisboa.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Sua janela

Depois de algumas semanas de dispersão, volto ao meu professor. Ontem precisei ir à Secretaria de Cultura no Largo do Paissandú. O centro me pareceu mais bonito, um alívio comparado ao horror da época em que eu trabalhava oprimida por aquela quantidade de gente e meu salário baixo. Meus olhos mudaram ou foi a conjunção sinistra do movimento Vivia Centro com a lei Cidade Limpa e o prefeito Kassab? Não quero reconhecer mérito em quem não confio, mesmo que os tenham, se está mais bonito é o mínimo dessa canalha criminosa e cretina. Peguei o ônibus em frente à Praça da República e passei em frente ao seu prédio. Pensei em ligar mas não liguei. A Cidade Limpa não deixa o Copan mais bonito.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Sobre a insônia

O corpo ardia, mas não era febre; também não era nada lúbrico. Era somente uma calentura esquisita que o impedia de dormir, como se estivesse assando. Mas a noite estava fresca. A cabeça lhe fervilhava um pouco e, achou ter encontrado alguma panacéia universal no estado delirante do dorme-vigília incandescente. Achou, por um átimo, que era Ganesh, com a sua cabeça paquidérmica e sentiu-se com os vários braços de Shiva. O dia seguinte lhe parecia tão longe como falar na situação do país em 2050, 2070. Ardia como se o sol do meio-dia lhe queimasse costas, peito, pernas e viesse por todos os lados. Fora começou a chover; sentiu vontade de despir-se e correr pela chuva, mas sentiu medo de destemperar-se.

domingo, 7 de setembro de 2008

Estou tentando ligar pra você desde quarta-feira

Estive ocupado demais nos últimos dias, eu sei, mas você podia ter escrito um email, sei lá! Agora você vem e quer que eu entenda tudo, te diga que vai ficar tudo bem, quer o quê?! O que é que você queria?! Eu sei lá dessa porra, conheço o que vejo na televisão, tive um tio que morreu disso, o irmão da minha mãe, que te interessa?! Eu falei que você tava se arriscando, eu falei, mas as coisas têm sempre que ser do jeito que vo-cê quer, não é mesmo? Então vá se foder! "Amigo" é o caralho! Eu avisei que uma merda dessas ia acontecer, agora não adianta vir chorando pra mim, não! Agora eu quero mais é que você se foda, que é pra aprender. Quam avisa amigo é. Como é que eu ia saber?! Eu só queria o seu bem!

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

raios fúlgidos

para o turista que desbrava porto seguro, patrimônio histórico nacional e patrimônio natural da humanidade as mãos secas à noite programa certeiro é desfilar pela passarela do ácool o que eu não sabia é que não haveria mais creme, a embalagem vazia também espanhóis, italianos, holandeses e principalmente brasileiros que índio? resta o protetor solar, preto agora também não pode esquecer casinhas coloridas tanta(s) cultura(s) a igrejinha de N.S. da Pena à noite rôo, rôo esse dente, meu bem, sundown centro histórico bruxismo e tv ligada sonho intenso miscigenação air conditioned nivea o marco da posse, lavrado em pedra de cantaria all inclusive lá de cima, o turista descobre a paisagem baiana o marco zero do turismo brasileiro paz no futuro, glória no passado, o presente, souvenir

Nada de xepa...

Jamais freqüentei baile da terceira idade. Não sei jogar dominó e a tal regra do proibido dar caroço, me incomodava. Isso de ter que dançar com todo mundo não me agradava. Era só o que me faltava não poder recusar parceiro depois de velha. Sempre fui enxuta. Muito bem cuidada. Quarenta por cento da minha pensão era gasto em produtos da linha Renew. Ou seja, o mínimo que eu queria era bailar com homens de quarenta anos com fôlego de vinte in natura. E se tem uma coisa que aprendi nessa vida era saber exatamente onde encontrar o que precisa e pagar pelo preso justo.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

quartaquinta

quando é noite e realmente não tem consequência que não seja, humm. que de alguma forma não seja: compensa-dor. mas quando decidi sair daquela casa, eu fui até a maçaneta com passos bem lentos - e você ainda apagada lá no sofá com um gato passando rajado e um preto olhando fixo. não sei como a gente ocupou tão bem aquele espacinho. levei metade das garrafas da sala pra cozinha. eu sabia que do outro lado das paredes era tudo sol quente nas cabeças nos canteiros centrais nos carros no asfalto nos fígados resistindo aos excessos da nossa civilização. respirei fundo mais de uma vez. e a minha mão na maçaneta abriu uma ferida de luz na noite. ontem foi um sopro que emendou hoje:

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

o tempo do trem daqui para a Bolívia

Abro este diário. Com receio. A Tour Eiffel parece uma cabana apache. Eu também, como os holandeses, quero adquirir a velocidade de uma equação por olhar. Olho o aviãozinho que passa. Quero tudo apavoradamente. Estou segura. Estou apaixonada. Ai que enjôo me dá a estratégia do açúcar. O Torquato Neto que se jogou. O Torquato Neto que se debruçou na bananeira. Sou. A gente quer que a vida se aproxime. Alguns acreditam em deus, outros em explicar a estrutura do universo e há gente até que entenda o mapa de Amsterdam. Que sem esquecer a gente seja feliz. E "há um esquecimento positivo", disse ele. E não tenho mais como perguntar "e este pode ser programado?" ou "é possível viver uma segunda vez?".

terça-feira, 2 de setembro de 2008

se houvesse

Ela morreu num acidente de carro porque estava se separando. Ansiosa, alterada, bateu o carro e morreu. Elas também morreram, a mulher e as duas filhas, porque o caminhão atravessou a canaleta e esmagou o carro. Estavam nervosas também? O motorista do caminhão. Você tem medo de estrada, se preocupa por tão pouco, não teve tragédias na família, sinto vergonha dos desastres pequenos. Os grandes horrores começam: se o motorista fosse amado quando criança. Amando e cuidando, tranquilo e confiante, os carros são pessoas, indo e vindo, estou indo também. Se houvesse um pouco de amor, eu não me explico direito, se fosse, seria, assim.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Sobre a guerra santa

O estandarte vermelho dos otomanos surgiu no horizonte, milhares deles, a aurora vermelha no dia nublado. As bandas militares dos janízaros tocavam suas estranhas marchas militares cujo som lembra um amolador trabalhando as espadas. A justa será breve e gloriosa, venceremos os turcos e sua fé suja, nós, legais e detentores da Terra Santa por direito. Que são seus cavalos e lanças ímpias frente à nossa fé? Fígados e humores e grande quantidade pulam desses seres infiéis e renegados. Todos mortos, finalmente, os cadáveres, deixá-los-emos insepultos, aos abutres e aos ratos. Mas recolhemos seus estandartes rubros e as tropas de infantaria acharam por bem cozê-los em água fervente e comê-los.

domingo, 31 de agosto de 2008

O cachorro morreu e eu nem fiquei tão triste assim

Ultimamente vivia de nariz quente porque a tristeza seca e amorna os cães, se eu soubesse então pegava-a nos meus braços e dava-lhe o amor que eu tinha pra dar e que estava ali, tão sincero e desimpedido quanto um mês de férias, eu de tristeza prolixa que gosta de se vangloriar, a cachorra com esforço enorme ainda assim servil bateu o rabo, duas três vezes, e obediente se apagou. Amar um cachorro é algo assim sem verbo, só posse. Quando criança matei o peixe e o luto foi: o que não teria mais. Hoje não sei o que será do corpo, a veterinária se encarrega, à noite uma festa e no futuro canis. O que eu tenho é mesquinhez e uma alegria dura e cheia de autocontrole, de quem pode ter.

sábado, 30 de agosto de 2008

mto difícil aqui

depois de horas de temporal a luz não voltava. os dedos pressionando o interruptor nos extremos para ouvir o som seco, que companhia. a notícia recente de que você morreu, "passou dessa pra melhor". como explicar que só consegui realmente sentir a presença da sua pessoa depois disso. você anestesiado no horizonte era a vida. a morte foi uma força. uma foto com flash de todas as fotos de repente. demoro com o álbum. uma luz. vivendo você se escondia atrás do q. não deu conta não correu atrás e por isso imagem muito clara e imaginativa era eu te ensinando a ter prazer, algo meio assim, pai, agora sente isso aqui, pai, olha eu! qual amor não traz morrer? o que sinto agora quase me mata.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

azul- piscina

vou nadando e pensando na água dos recortes. larguei tudo meio de lado. isso me dá uma incerta tristeza. mas como podem os homens acumular tantas coisas em suas estantes e entre os seus afazeres diários: duas semanas, o tempo é relativo. depois nada cabe dentro. e pensando um pouco além: realmente não sei o que ficou decidido entre nós. falei tanto e la verdad es-que-si de tudo. nadando e pensando mil e quinhentos metros – rasos que só: eu não consigo atravessar a piscina inteira sem respirar. minha sede pausa no que não se sabe nem se soube e fico na dúvida - que faço com esses recortes. lembrei daquele cardume de peixes pintados. eu quando eu nado não entendo. mas também não me preocupo tanto assim.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Depois de entregar sete pratos seguidos, como nunca acontece nesse restaurante, de dentro da cozinha as galochas brancas rangem uma oscilacao, semi-passos, antes so trocam o peso do corpo de um pé para o outro. Satisfaçao de cumprir, hesitaçao de nao saber como voltar, o que eu fazia agora mesmo?, a pausa de sempre. Morde o labio. Nao percebe que estou olhando. Uma gravata corre o olhar esbaforido de quem nao enxerga um palmo a direita de sua c/c. Alguem traz a mao em outro corpo, polo cor de rosa, pela cintura. Muita luz. Fecho os olhos: tua doçura que me leva. Nada é mais bonito do que uma brecha de ternura que escapa de um homem. E vem dar no céu aberto. Que pena, nenhuma Olivetti em Milano.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Folheto rosa

Havia os livros, mas embora alguma orientação fosse melhor do que nenhuma, os livros eram coloridos, eu observava as figuras e era isso. “O que está acontecendo comigo?”... “De onde vêm os bebês?” Eu tinha também um folheto rosa que meu pai enviou pelo correio. “As mudanças da adolescência”, dizia a capa, o desenho de uma moça com os cabelos transformando-se em flores. Na escola falavam de um videogame que mostrava um homem pelado num labirinto, até encontrar uma mulher agachada e "tchum". A gente explicava a situação com onomatopéias e outros verbos engraçados: furunfar, nheco-nheco. Nós conhecíamos a função dos órgãos sexuais. Os meninos desenhavam pintos por toda a parte.

domingo, 24 de agosto de 2008

Amor depois de grande

Ele tinha o maior pau do mundo e só assim seria amado. Eu só sei falar disso? Mas era muito feio e ruim de cama, então puseram máscara de borracha sofá encapado "senta aí" e um outro, musculoso e tatuado, de cueca fio-dental. Se a sua mãe te visse agora. Mas nem ela me dava muita atenção. "Já falei pra você guardar isso". Só tinha olhos pro caçula. Faz cara de mau, isso. Soca na boca dele. Like that, bitch? Deus não desampara ninguém. Todo mundo tem o seu talento. O da outra era ser a maior pas-si-va do mundo! Passou o dia seguinte peidando que nem uma bola murcha. Tinha que ser ela, que fistava e só fazia a seco. Bareback. O cara é que nem gozou. Alguma limitação biológica, devia ser.

sábado, 23 de agosto de 2008

design de interiores

quando acordou, já passavam das 11h, horário em que os pedreiros deveriam chegar. talvez não viessem, acontece. pensou também que o condomínio não permitiria a quebra das paredes. as próprias leis da física dirão que o prédio desaba. ficaria com paredes marcadas de X. grafitadas. o lençol xadrez no chão. amarrotado e novo. o corpo nu e o travesseiro como rosto. uma quadro: o rosto que se identifica com o travesseiro. apóia-se sobre o telefone dourado, tirando-o do gancho e gritando ALÔ! inútil dizer que quando o objeto é decorativo há silêncio. pulou da cama – as compras foram desempacotadas e colocadas organizadamente no armário, como no dia em que arrumamos o quarto. quando A.B. ligou, conversando arrancou o rótulo e colou-o na TV: "flower homespray perfuma delicadamente o ambiente, criando um clima pessoal e aconchegante".

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Veprové knedliký a zelý (carne seca de porco)

Abriu a porta e me sorriu como se visse o melhor amigo voltando de uma longa temporada na Tchecoslováquia. Obviamente, esperava presentes e histórias para mostrar que lembrei dele em vários passeios. Antes, me fez ouvir atentamente todos os seus segredos íntimos e contabilizar as vezes que tinha dado para o pedreiro da casa vizinha. Aos prantos confessou que me traiu com meu marido e disse que precisava do meu perdão. Voltei pra casa com mais peso e durante duas semanas experimentei várias receitas tchecoslovacas a base de carne de porco. Meu marido reclamou que a carne era gorda, mas comeu tudo todos os dias.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

o espelho imantado

Me é impossivel escrever desde que percebi que obrigada, o agradecimento, é uma palavra que em todas as outras linguas que conheco nao tem genero. E: existo? Se nao me lembras, se nao te escrevo? Loucura? Miragem, teus olhos por trás de mim falam, por dentro daqui me olham, em todos os espelhos deste infinito apartamento de Budapeste, pisco muito os olhos nublados, medito teu suicidio, se momento de morte em mim do amor ou se é só a sonolencia que te traz, como um galho pela margem a correnteza estanca e o dedo que me atravessa o cabelo era capaz de ser teu fantasma de pau, tua lingua, minha lingua, estrangeira de mim em qualquer parte.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Tanta engenhosidade

"Na escola eu tinha a sensação de habilidade e domínio. As aulas do primário seguiam em seu mecanismo de pequenos problemas e soluções progressivas, mecanismo que eu identificava e em que me inseria com confiança. Às vezes competia com as professoras num estado de euforia infantil, porque meus pais me ensinavam as coisas, eu sabia que o francês era uma língua latina, sabia localizar a Índia e a Tailândia no mapa e dizia fale mais devagar em espanhol. Habla más despacito. As professoras sabiam isso? Eu duvidava." Escrevo ainda comovida com Nathalie Sarraute e sua escola primária: "Estou protegida por leis que todos devem respeitar. Tudo que me acontece aqui depende apenas de mim."

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Sobre muros

Um pedacinho do muro! Vejam só, eu lembro de quando o muro caiu. Minha sogra trouxe da Europa um cartão-postal do Landesarchiv Berlin que tem encrustado, numa caixinha circular de plástico, um naco do muro, do tamanho de uma unha, grosso como a polpa do dedão da mão. Na foto, a Volkspolizei mal humorada. E eu vi aquilo cair, estava no primeiro ano primário; a professora Elza tinha um ar seráfico. E o muro caia. Picaretas, martelos; perto de casa erguiam uma delegacia pré-construída, triste como um fóssil de museu, e eu a via de cima do trepa-trepa. Na minhas mãos, agora, um postal com um fragmento da História. Mostro para o meu pai: "Que muro? Tem um monte de entulho no fundo do quintal".

domingo, 17 de agosto de 2008

Baby Love

Deixou de fazer natação. A piscina, o banho, a água fria. Tinha o corpo pequeno, magro, muito branco e sem pêlos. O pênis minúsculo, apontavam. Japonês. Mas não sabia se era uma coisa da raça mesmo, não tinha idéia, o pai era muito fechado. Nunca vira o corpo do pai. Dos outros meninos, nenhum era japonês. O Arthur, que era mais alto, e loiro, forte, esportivo, gostava muito dele e deu um jeito de estreitar a amizade. Chamou-o para ir à sua casa, um dia, jogar videogame. Meio sem jeito, passou a mão em seus cabelos. E pediu-lhe, com vergonha, que vestisse a calcinha da irmã. Era uma calcinha rosa-bebê com detalhes de renda. O menino olhava para os tiros na televisão e assim continuou. Usava óculos. E perdeu três vidas naquela tarde.

sábado, 16 de agosto de 2008

aqui

no peitoril da janela, a xícara largada há meses, úmida da chuva. guardou ali porque um dia seria documento histórico – "a xícara receptora", "deixada naquele período", anotaria no caderno. o valor do objeto transformando o objeto de valor blá blá. enrolado entre os lençóis ele dormindo, finalmente dormindo. a fineza de perceber uma pequena carícia não humana no pênis: o sono. ao lado, o telefone da herança, dourado, não funcionava. o celular desligado. a vida cabia ali. essa dor indeterminada de haver terminado a mudança, as coisas todas guardadas no apartamento. no abrigo. tudo pronto. mas pra quando chega? na parede nova um bilhete antigo, faz um tempo: um velho calção de banho/ o dia pra vadiar.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

bilhete único (vale transporte)

Ele vinha de olhos claros e bonezinho de veludo pela rua. Só faltava um relógio de bolso para compor o visual. Talvez, um guarda chuva xadrez cairia bem – para girar no braço enquanto assobiava, já que o dia era de sol. Caminhava feliz. Bem contente. Super alegre. Chegava a ser arrogante. Sim, ele era muito arrogante envolto em tanto contentamento. Empurrei-o na frente do primeiro ônibus que passou. Quer dizer, do primeiro ônibus de cor amarela e placa “Realengo”. Não ia dar o prazer a ele de morrer chique num “vermelho-Leblon”.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

österreich

Meu ponto mais ao leste no mundo, de Viena a Budapeste rumo, mas onde fica o centro de tudo? Nao sei diferenciar quando bate o coracao ou o estomago e nao entendo porque chamam de "limpo" o ceu quando o azul vai ao fundo. Dentro do trem o padre passa e repassa com os mesmos aros de tartaruga do Sartre. Me olha. Meu namorado no Brasil completa 58 anos. Chove. A agua corre limpa pelos Alpes. Casas austriacas agueadas, por 15 metros nao se afogaram os fios de alta tensao. Por cerca de metros metade da Áustria se salvou de ficar sem luz. Creem alguns que a igrejinha no alto da encosta por onde a água se desviou os protegeu. Mas o paroco, de volta a sombra da sacristia, lembrando meus joelhinhos, apalpou o roxo veludo e gritou: -Blasfemia!- mas isso foi em alemao.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Crianças da rua

Meu pai nunca foi mulherengo. A moça que engravidou foi sua única traição, conforme disse muitos anos depois. Eu acreditei. "Sua mãe é uma montanha-russa", ele disse. "Às vezes me assusta." Entre outros detalhes em que enxergo algum significado, está a personalidade dessa jovem virgem, órfã de pai. Assistente social, mais baixa e, conforme disseram, menos bonita que minha mãe. Provavelmente sim, menos bonita, porque ainda impressionam as fotos daquela época. Não creio que o pai quisesse mesmo uma amante: uma mulher a mais, seu pequeno harém, uma fonte extra de sexo. Talvez quisesse apenas descansar, um pouco de afeto. A mãe dizia: "Seu pai era bonzinho com as crianças da rua."

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Sobre a beleza casual e a beleza intencional

Uma coisa é a beleza de rios e lagos e matas. Há gente que a considera a beleza ideal. Porém, a vejo como um acaso; é bonito, claro, mas algo que foi intencionalmente feito para ser belo, pela mão e engenho do homem, é muito mais belo, porque é a beleza intencional e procurada. Não só nas obras de arte, mas também nos objetos cotidianos. Em Paranapiacaba, há o velho pátio da ferrovia, e nele há vagões que jazem e se desfazem; é triste vê-los assim, as chapas esburacando-se sob a umidade constante e alimentando os líquens que lhe nascem sobre. Assim como o museu ferroviário é tristonho: os vagões parados são como as carcaças de boi que jazem no semi-árido, sem água; e aqui não é a morte do acaso, é a morte do engenho.

domingo, 10 de agosto de 2008

agosto mês do desgosto

escreve um email diz que o ebó tá pronto a mamãe varando acesa a madrugada jogando tetris no celular ganhando todas geladeira forno freezer microondas o lobisomem rodeia a casa pedindo sal diz "não dou" pra você ver o que acontece e o vô falou que veio o papa expulsar os bichos maus se eu fosse mau não tava aqui tem que esperar descarregar pra carregar pra descarregar senão fode a bateria mamãe encaixa faz sardinha papai fez a primeira quimioterapia vai ficar careca e envelhecido com anemia comer fígado luz acesa na cozinha nem vem lobisomem eu vou prender a respiração e se eu contar até quarenta eu salvo o mundo

sábado, 9 de agosto de 2008

a destruição de Babellen

arcaico bisonho: se uma coisa equivale a outra coisa, como essa coisa permanecerá ela mesma? você consegue escutar? um burburinho. isso é o quê, prazer em substituir? que quer essa sua gente, esse um marulho? árabe xacriabá grego negro, essa morte? que querem e por que na superfície? patinação, onde fica esse delírio? aqui, há uma montanha pra dentro em meu peito que se faz côncavo para que eu enxergue-me-se: bem profundo: querer que seja simigualzim-mim. vocês arrivistas só chegam no pesadelo-lê: VIEMOS MOSTRAR: A REALIDADE NEGA, SEMPRE – ó: grriiitam deliiiram o tempo inteeeiro do tempo dos tempos: "La litteratuuura: la contestação-ão de la philologie-i". nas entradas do livro descobri uma realidade administrativa: a circunscrição circunscreve. grito VIVA! – o burburinho de-sa-pa-re-ce.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Códigos e alianças

Sempre achei tricô um porre. Quando meus netos nasceram, eu já sabia os códigos da Hermes e da Quatro Estações de cabeça. Nunca veio um só conjuntinho de cor diferente ou número menor. Desde nova achava cabelo grisalho um pavor e aderi ao acaju antes do baile de debutante. Nunca gostei dessa tradição de duas alianças após a viuvez. Quando meu primeiro marido morreu, transformei a aliança em um brinco – ela era fina e só deu para um. Dois dias após a morte do segundo, fiz o outro brinco e com o ouro que sobrou um pingente de coração trancado. Pena que não deu para fazer a chavinha.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

sentimento de piscina

seilá porque, talvez um pouco por causa da saudade, o nome dela era Laura. mas isso não significa - eu recorto. natação três vezes por semana. ela fazia de um jeito a água bater nas pernas, as pernas na água, o braço adentrando a superfície e subindo: água espirrando por cima e para os lados num barulhinho bom demais para ser verdade. e quando nadava costas tinha era certa vertigem de quem não sabe longe ou perto o fim: há que ficar de olho nas bandeirinhas esticadas no teto ou no tempo. quando nada peito, pensamentos lentos. e borboleta - borboleta não é nada leve nessas horas. Laura sai da piscina transparente e azul, com os sentidos super molhados. que tudo a textura dessa toalha.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

cuco

Fabriquei um relogio de se comer feito torta e tirado dele um pedaco o tempo se equilibrava endurecido, o mundo todo estatico por uma hora, enquanto meus dotes enalteciam calmos e eu aproveitava todo o silencio para te tocar. Foi assim te dei um, te dei dois e quando chegou o terceiro filho, nao havia partida que nao me levasse ao redor dele. Feito mariposa rondando lata d'agua pra ver sua asa, preso um narciso de meia-tigela, as digitais dos seus dedos, meu menino, a maozinha por envelhecer levando a boca microbios e balizas futuras, racoes diarias de cuticulas, proteinas que continuam a crescer enquanto morres. Porque no meu relogio-pao, a morte tem alguma duracao, inequivoca, inexpressa, intermitente.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

O fundo da mochila

Quando chego no centro de documentação abro minha mochila, separo duas canetas, a folha impressa com a lista dos personagens, o caderno novo onde comecei minhas anotações. Caderno e folha estão guardados em uma pasta, ao fundo da mochila, antes da pequena necessaire azul onde levo bolachas integrais para o lanche. Uma caneca plástica para beber água sem gastar copos descartáveis e, encaixada entre a pasta e a necessaire, um estojo com MP4 e fone de ouvido. Cuidado obsessivo de guardar tudo em pequenas bolsas, bolsas dentro de bolsas. Queria não ter estudado nada sobre videogames, nunca ter jogado The Sims, nunca saber como a vida é sistemática.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Sobre os dicionários

Critica-se por aí a petulância da gramática e a aridez dos dicionários. Que quer essa gente? O ridículo dicionário do quotidiano, com cento e oitenta verbetes, todos substantivos concretos e verbos-coringa? O dicionário, ao contrário do que dizem, não é uma ferramenta; pode sê-lo. É como um enxó etrusco que aflora à superfície: teve uso de ferramenta; hoje, é o tesouro que conta sobre o passado; não é o enxó produzido em qualquer fundição boca-de-porco. Por isso a necessidade de dicionários. Entristece-me quando entro numa casa e, de olho na estante, não vejo dicionários. Onde vão as pessoas ver suas dúvidas? O que pode ser muito pior: talvez aquela gente sequer tenha dúvidas.

domingo, 3 de agosto de 2008

A vingança do Boi Bolha

com a Andrea e o Gustavo

O Batman acaba de sair do cinema, há luzes por todo o lado e ninguém sabe que ele é, na verdade, Bruce Wayne, o milionário gostosão que vive recluso nos limites de Gothan City. As luzes do shopping não permitem que se formem sombras e Batman procura, meticuloso, um modo de desaparecer. Ninguém o reconhecerá aqui, há outras pessoas vestidas de Cavaleiro das Trevas, no máximo ele será alguém com um bom alfaiate e hoje é tão fácil caminhar entre as lojas. "Você quer catchup, meu bem?". Olho para os lados, nem sinal de vilões. Na minha frente, um hamburguer vermelho exala o cheiro doce e quente da vingança. Esperar, esperar. O maxilar duro estraçalha o hamburguer. Será esta a última refeição do Homem Morcego?

sábado, 2 de agosto de 2008

desgosto

os sinônimos, dizendo o mesmo sem fato, a coisa sem si, dizendo sem de fato ouvir. correspondência? como um equivalente pode se desenvolver de maneira tão fria? estendido aí, dicionarizado, prostrado dizendo que? vi claramente que não é um tecido – não são retalhos – NEM VEM com essa história de que texto é trama, o texto é o desenvolvimento de microorganismos, uma cultura de bactérias, um caralho o texto é o suor, muita umidade o texto, tecido só se for histológico, células se trocando o tempo inteiro. como é que existe sinônimo? se uma coisa equivale a outra coisa, como essa coisa permanecerá ela mesma? você consegue escutar? um burburinho. isso é o quê, prazer em substituir? sinônimo apodrece na redondeza da boca ó: desgosto, insatifação, aflição.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A CHEGADA

Nunca fui tão feliz na minha vida. E olha que não vivi pouco. O meu quarto aqui no asilo é o mais movimento. E não é por acaso. Sempre soube receber. Quando meus filhos me internaram achando que iriam por fim a minha vida sexual, mal sabiam que ela só ficaria mais animada e rentável. Afinal, sempre soube receber. No começo, era tudo um hobby, quase uma brincadeira de criança. Com o surgimento das pílulas azuis passei a cobrar com desconto direto nas aposentadorias. Tem muito velho que gosta de bancar o esclerosado para não pagar. Faço fiado sim, mas só por crédito consignado. E nunca, mas nunca em mais de seis prestações. Posso ser velha, louca não.
 

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