segunda-feira, 31 de março de 2008

Anatomia particular da segunda-feira

Metrô cheio. Gente, toneladas de gente; dezesseis pés disputando um metro quadrado. Cotoveladas, mochilas. Plácido encontrou o vagão assim; encontra-o assim todos os dias. Foi espremer-se no corredor, para não ficar na porta, e acabou exatamente sob um alto-falante que esparrama a cantilena burocrática de regras e estações. A certa altura, bem ao seu lado, um banco vagou. Uma senhora de idade levantou-se e saiu, e Plácido sentou-se no banco reservado. Um homem de bigode disse que ele não podia sentar-se ali, pois era reservado a quem tinha problemas. "Mas eu tenho problemas", disse Plácido, "o senhor não vê, mas eu tenho três rins". O homem desculpou-se e não mais incomodou Plácido.

domingo, 30 de março de 2008

O amor no meio

Depois de um mês morando juntos, decidiram ter um gato. Porque é esteticamente agradável, e porque é fofinho, e porque eles queriam esbanjar amor, distribuir, transbordar. Os gatos não têm culpa. Aquele arranhou os sofás, comeu plantas, fugiu para o vizinho e, depois de castrado, engordou e ficou molenga e dengoso. Sempre que um dos dois chegava à noite, cansado do trabalho, do ônibus, da vida, ia conversar com o gato, que acabou se revelando um ótimo amigo: apenas ouvia e ronronava. Dizem que gatos são muito individualistas, mas você nunca vai ver um gato no divã falando sobre as suas angústias nem te agredindo rancoroso, com meias palavras. Aquele foi ficando velho - e engordava, feliz, com tanto whiskas sachê.

quarta-feira, 26 de março de 2008

pra tudo se acabar na Quarta-Feira

Jesus e Mickey esperavam na eternidade pelo maior momento de dúvida e dor. A poeira do tempo se despejou sobre os olhos e, teletransportados ao tribunal sobre a ponte pênsil, balançando numa bruma branca e azulada, o juízo se deu:"Quero a pureza da maternidade. Ser mãe não pode ser um futuro descartável", dizia o Mickey, pedindo a abertura do processo contra o Walt. De Jesus já esperavam a lenga edipiana: "meu deus, por que me abandonaste?". Os promotores do enredo pediram a palavra e disseram desculpas por não terem se libertado ainda de certos estigmas da cultura ibero-ocidental. E na vez dele de falar, Jesus disse cheio de piedade: "Desculpem, mas o Mickey datou, não datou?". E o rato vôou pra cima.

domingo, 23 de março de 2008

Sexta-Feira da Paixão

Apedrejada com flashes. Maria Madalena chegou nesta sexta-feira, 21, a São Paulo. Sem dar entrevistas, sem dar declarações, sem dar bola, não dá mais nada. Óculos escuros e a franja cobrindo o rosto, Maria Madalena delicadamente abre caminho entre a multidão de jornalistas, fariseus, e a passos largos se dirige para a rua onde o motorista a espera. Esse é ela quem paga. Há dois anos detida em Jerusalém, Mary Mad foi descoberta em sua imundice por agentes especiais de Roma disfarçados de eunucos. Deportada de volta para Babilônia, Maria atravessa a cidade convencida de que a vida de puta não compensa. Aposentou-se da via crucis: agora, no máximo, ponte aérea. E o governador de Nova Iorque que ressuscite sozinho!

quarta-feira, 19 de março de 2008

Quarta-Feira

Quanto mais a imperatriz era elogiada nas festas a que ia, feito uma centopéia de pelúcia, todo encarnado, seu rabo crescia. Balançava, desfilava por cima dos tapetes persas vendidos por metro, se enrolava no salto, instigando tudo quanto é reunião. E que ombros! que belo par de ombros!, diziam quando freqüentava ao jóquei, nas comemorativas. Em plena avenida se impressionava com tanta marquesa, o rabo a lhe apertar os figos e, fitando a mocinha de família, dizia: Do meu ex-marido, figurão Bob Franco da alta de Botucatu, gastei tudo, a única coisa que sobrou é esse papagaio de madeira, laqueado em vermelho e azul, talhado de maneira quente: Aruba 1994. Dá pra ser?


domingo, 16 de março de 2008

Domingo

Domingo é dia santo, ela disse. Imaginou Deus - exausto, arrependido. Mas não era sábado? "Que seja, benzinho. Você não devia trabalhar tanto". Fácil pra ela, que não tinha um texto pra entregar segunda, dizer o que pro editor? Ela lia um romance do Daniel Galera ou algo assim. Era arquiteta, culta e não curtia monogamia. Um casal descolado, os dois. Ele já tinha dado o cu. "Vamos pedir uma pizza?", ela disse. Imaginou Deus, exausto, comendo uma de aliche. Deus tem bafo? Ela olhou pra ele sem entender. Era bonita e compreensiva, mas não sacava nada de Deus. Uma de aliche, por favor, e uma marguerita. Troco pra cinqüenta. Dizer o que pro editor?
 

Free Blog Counter
Poker Blog