segunda-feira, 30 de junho de 2008

Desbussolado

Agora penso; não penso em nada. Melhor: minha cabeça é uma montanha imensa de pensamentos desconexos, de fragmentos minúsculos, limalhas que não são reconhecíveis. E digo, nervosíssimo, que nem sequer há um ímã para que eu as junte; partindo do pressuposto que essas limalhas sejam, de fato, metálicas. E é um estado de confusão em que nada dá liga, nada se junta. Era ainda preferível a ausência da linha de pensamento a isto. Meus pés carambolam, não sei, eles, os sapatos devem estar guiando. Tresando; parece-me que entrei na rua errada e não diviso a placa. Alguém abre uma porta conhecida: "ora, veja lá, é você! Vamos suba, vamos beber alguma coisa"; eu vou, que coisa!

domingo, 29 de junho de 2008

28 de junho

À memória de


Estava no segundo ano de arquitetura quando a conheceu, um ano mais nova, mas no último ano de filosofia. Virgínia era filha de uma atriz com um professor de literatura. Começou a freqüentar a casa dela, tão diferente da sua, e seus dedos acariciaram os livros da amiga até chegarem ao meio de suas pernas, um redemoinho forte como ela não imaginava. As duas eram inseparáveis, exceto quando Virgínia ia para reuniões secretas ou passeatas públicas que ela, filha de militar, apoiava apenas à noite, sozinha na cama, molhada de espanto. Não demorou para que seu pai descobrisse o que se passava. Num bar em Nova Iorque os protestos começavam, mas já na segunda-feira seguinte Virgínia não estaria na faculdade. E nunca mais apareceria.

sábado, 28 de junho de 2008

bethânia photo

eu poderia pegar tudo o que quisesse, e se referiam aos canivetes. vovô era um entusiasta de canivetes, cortes. quinze, no mínimo. todos meus. na antiga cômoda bege percebo que não há nada, os peões roubaram tudo ou foram os primos? resta pequeno estojo bethânia photo, cliques convenientes. os parentes em pose 3x4, de modo que: os olhos se expandem pelas têmporas/ as cabeleiras marcam a superfície do papel como gorduras frias. o olhar dos parentes - documento em 1959 já inevitável/ possível só através do distanciamento. pose pra quem? a impressão ferida de que sim, sim. invertendo o que se chama de papéis - quem olha e quem olha? esses parentes já sabiam? não sobrou um para contar a história.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

silêncio (7)

João, sempre quieto, sussurrava no ouvido da mãe o que quisesse dizer quando estavam na casa da avó. Não queria atrapalhar a conversa dos outros. Adulto ele, ontem, bebeu vodca na festa para ficar falante esperto engraçado. Esqueceu por poucas horas o cuidado de não fazer barulho nem ocupar espaço demais. Hoje acordou tarde com uma leve dor de cabeça e um mau humor que o penalizava, apesar das memórias das alegrias compartilhadas, por ter talvez ultrapassado a contenção que o protege dos fracassos. Na frente do computador, em tentativa de passar o tempo e esquecer as dores, escreveu para o amigo que organizara a festa "Festa ótima, muita diversão. Você me desculpa?"

quinta-feira, 26 de junho de 2008

fraude de tempo - 24hrs

estava esperando até o dia em que fosse sequestrada. e enquanto isso tramando incidentes por trás dos panos. a espera sublimando, exposta. a espera é tão obscena. delírio inconveniente. estava esperando. estava esperando. mas era uma vontade que dava e que tomava o corpo e as entranhas - e queria e ponto. fora do alcance, transporte ultrapassando a língua, ou a borda. chega uma hora em que não se pode mais discorrer sobre a vontade plena. melhor assim, para não estragar essa expressão. mas digamos que, no final das contas, o tal sequestro era de fato o encontro em estado latente, sem roupas e sem tempo de duração. nada ao lado, transbordante.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

vasco

E batia-me ao encosto e ao virar-me nada via e jurava-lhe morte, mas como?, estás a estar morto mas é já? E as lâmpadinhas não acendiam e a aeromoça nada que cá vinha, e eu pedia a nossa Senhora, que a mim sempre foi uma gorda roliça e não a rapariga magrinha, faz favoire, que não seja o andante um fantasma que caminha a assombrar a cabina, e que Deus permita dizeres a verdade senhorinha, que amanhã ao abrir a janelita não encontre alga em lugar de nuvem, espesso abismo turbulento, que não esteja eu a ver bobagens, monstros vermelhos, cíclopes alagados, dragões a rogar fogos de promessas, fortunas pelas ventas, venha, minha Senhora, me recompensar esta vida de tormentas.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Vã e bã

Os professores sempre foram importantes para mim, mas tive problemas entre a primeira e a terceira série. No primeiro ano, briguei com a professora porque ela ensinava um alfabeto oralizado, sengundo o método da escola. Dizia vã e bã em vez de vê e bê. Eu sabia escrever e reclamei; chamava-se Elenice, acho. No segundo ano, a professora Lígia disse em algum momento que o francês era uma língua anglo-saxônica. Ah, professores. Numa tarde de caos didático ela soltou a famosa ameaça de sentido claramente inverso: "se alguém quiser, pode sair da sala". Eu saí e pelo resto do primeiro grau recebi seus olhares profundos de orgulho ofendido e mágoa.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Praça da Sé, 07:30

Passo todos os dias diante da Catedral; geralmente nem a olho, cruzo a praça na diagonal para esquivar-me dos mendigos. Uma época, não muito passada, eu pegava ônibus na lateral direita e, parado no ponto, tinha tempo para me dedicar a olhar o templo e seus detalhes reconditamente expostos. Creio que a Catedral não foi construída (a despeito das fotos que gritam isso), mas que nasceu, brotou ali, de uma semente pétrea. Seus frisos, suas cornijas, parapeitos e entalhes terminam de forma vegetal, se bem que uma forma vegetal domada pela geometria própria do estilo - gótico -; e como se, lentamente, a Catedral continuasse a crescer, no sentido inverso da lenta desagregação. Daqui a mil anos, ela será diferente.

domingo, 22 de junho de 2008

A flor no cano

Tenho tesão por fardas, mas nem por isso, então. Bom mesmo é poder apalpar um moleque magro e sujo com a desculpa de manter a ordem, amparado pelo Estado, chocando a opinião pública de vez em quando, ok, mas colete à prova de bala não é campo de força. Bem sei. Viadagem é coisa que não pactuo, tem mais é que apodrecer na cadeia: suja a imagem, depois ninguém sabe porque tá essa bagunça. Tou falando de pau duro, rapaz, virilidade, coisa de ferro, de macho a medo, servindo a pátria e o próprio braço. Depois dá dois pipoco ou encomenda o defunto. Brincadeira não. Isso aqui, rapaz, não é pra quem quer. Cano grosso e pavoroso, tem mais é que usar - senão, bobeia, é o teu que tá na reta.

sábado, 21 de junho de 2008

mantendo os objetos afastados

voltei lá e tudo o que consegui achar foram uns recortes velhos e umas revistas. as gavetas já estavam todas em cima da cama: demarcaram muito claramente o que é que eu deveria olhar. seria polêmico abrir os armários (insensatez retirar o forro zig-zag, a parede toda despedaçada). pelo menos o mofo foi atenuado, as gavetas respirando como animais domésticos. lembrei de M., que dizia algo sobre o incomunicável: o incomunicável é o desejo. a comunicação se fecha em si mesma. chorei e quis também rir. as gavetas eram uma piada. não se comunicavam. joguei tudo no saco, revistas, pastas e até um diário. não coube nada no porta-mala e resolvi deixar o saco na esquina mesmo.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

cinema (2) - Elefante (Gus Van Sant)

Uma das possibilidades da ficção é empurrar pedras grandes e insistir em caminhos proibidos segundo as regras da não-ficção. Aí eu lembro de momentos em que descobri alguma agressividade potencial em mim. E eu lembro do prazer e das conseqüências de usar esses motivos na ficção e em algum contrário dela. A ficção permite a inconseqüência dos personagens. O não-ficcional pode em teoria isolar-se protegido. Eu sempre aprovo a iniciativa de empurrar mais longe no discurso, para brincar de novidade. Dúvidas tenho sobre carros com muito motor e pouco freio, sobre viver só o presente (e abrir mão da humanidade e dos compromissos), sobre matar criancinhas e sobre a superfície das palavras. Quanto aos personagens, podem morrer todos. Até gosto.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

sem título

só sei que vou me entregando ao tempo, vou estendendo o meu corpo, cobrindo os espaços da cama. viro do avesso, e devagar. embaixo do cobertor vem vindo pra fora um calor insuportável. não há mais o que pensar. vou me entregando ao ar do quarto e do céu que encerra a minha boca. penso que esqueci, enfim não sei se penso mesmo, ou esqueci de tudo. às vezes é tão difícil esse tempo, esse descrever das memórias, esse desescorrer. desço a mão mais embaixo do cobertor, cobrindo os meus espaços com os dedos. e depois disso, mais duas linhas brancas só por prazer:

quarta-feira, 18 de junho de 2008

aeroporto, humildade, sorte

De repente seria equivalente ficar debaixo dessa portada, deitar-me na cama e me cobrir até a cabeça a vigiar os bichinhos a me comer a barriga. Mas um dia depois de amanhã amanheço no Porto. Primeiro além-mar e depois de lá, três meses, trás os montes pirineus, balaton, acaso. Falo a língua do ainda-não-sei, mas entre os planos a Noruega, dos fiordes e do sol da meia-noite, é o mais exótico. Por aqui deixo o que as casas têm pelo caminho, continuo escrevendo às quartas e juro que desde pequena tenho vontade de ser arraia pulsando o rabo em quem me sorri pelo aquário, não dando, água-viva (vocês já viram a remora que nada colada ao tubarão? meu destino tão diverso), clareando a escuridão.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Aluna viciada

Fui sua assistente durante seis meses logo depois de formada. O projeto era encomendado por um produtor, um drama: professor quase aposentado que se apaixona por uma aluna viciada em heroína. Meu professor tinha a teoria, ouvida do Person (eu acho), de que "o roteirista é o terapeuta do diretor". Quando o trabalho chegou a certo impasse estético, ele concluiu que a aluna drogada simbolizava a filha adolescente do nosso chefe, o que implicava algum amor incestuoso reprimido, etc. Mas eu já era meio sambada quanto a homens de meia idade. Sem sublimação. Por que não ir direto a uma adolescente real com quem o cara quisesse realmente transar?

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Ilhas Malvinas

Em todos os mapas, em todos os cantos, nunca vi duas ilhas serem tão simbólicas para um povo. Até na previsão do tempo do jornal, aquele pedacinho irredento de Argentina está locado, como se, efetivamente fosse parte do território nacional. Pretensões todos temos, todo o tempo. As nossas Malvinas intangíveis que, no máximo, podemos fazer-lhes um memorial, como o que há na Plaza San Martin, com direito a chama eterna e guarda de honra. Cada um tem as suas Malvinas, exato, ao contrário da Argentina, nós podemos ter várias, como se cada ilha do Arquipélago fosse um desejo. Não é à toa que uma das grandes ilhas chama-se Soledad.

domingo, 15 de junho de 2008

Tudo sobre minha avó

Um dia ela viu um exército amarelo e vermelho marchando em direção a ela, rua acima. Mas isso não foi tão assustador quanto a consciência de que as crianças são cruéis, cruéis e rodeiam a nossa casa sussurrando assassínios, metem-lhe venenos, provocam vazamentos. Houve uma vez também em que um homem agachado à sua janela à noite imitava grilos para assustá-la. E, enquanto ela dormia, ele polia freneticamente os puxadores das gavetas. Minha avó passou boa parte da vida internada em eletrochoques. Minha mãe diz que seu retorno ocorreu na época em que eu nasci. Desde então o pânico acontece apenas de vez em quando, embora as vozes sejam constantes. E, curiosamente, ela nunca teve medo de mim.

sábado, 14 de junho de 2008

"uso chapéus para manter as pessoas afastadas"

onde fui parar com as coisas: em casa. deixei-as ali. sentei aqui. elas, afastadas de mim. ali. não sei por quê. pelo menos até que eu decida sair dessa, tomar cerveja etc. aí então elas se aproximam em desordenado movimento aéreo - e se acomodam todas na minha cabeça, num arranjo. as referências. é importante situar-se. quais são as suas. carmen miranda e isabella blow. "uso chapéus para manter as pessoas afastadas". saio, vou encontrar o povo. poltergeist. inventário: um pequeno banco laqueado cinza, objetos menos favorecidos comprados no centro, um santinho de cartolina chique (cristo sofredor), um garfo da infância.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

cinema (1) - Cidadão Kane (Orson Welles)

Muitas listas publicadas são feitas por jornalistas. Se boxeadores fizessem listas, Rocky poderia ser o melhor filme da história. Sempre evitei assistir a filmes sobre boxe e boxeadores. Continuo evitando, apesar de Touro indomável. Boxeadores não assistiriam a esse filme, imagino, a não ser em um mundo de boxeadores que fazem listas. Listas colocam lado a lado o primeiro filme em technicolor e um filme do Ozu, para que a erudição inclua mais um japonês na lista. Me parece mais sensato, em vez de top 100, 100 filmes de que gosto - evita que façam a propaganda do filme sobre o Nelson Ayres como um filme sobre o quinto melhor pianista do mundo. Do Orson Welles, prefiro O Processo.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

me promete que

e o fígado disse (para a mão que levanta o copo até a garganta - pois venha) : pára de me sobrecarregar, amor. sinto tudo demais da conta. pára um pouco, e só - nem que seja / eu te disse sete dias seguidos na semana e repito outra vez / caso não pare vai tudo _ tudo não sei o quê, mas - A - vai. o menino chegou em casa duplicando a imagem nos olhos. 2x2=4. é? talvez um pouco além, triplicando. ele entrou e o piso da sala. ele entrou e a mesa. a torneira. a cama em algum lugar perto (do fígado). depois: todos os desejos esvaziados, nada mais que um mar gelado (no fígado) pra curar a ressaca. sei que alguém um dia vai falar que isso é puro exagero.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

um western no roteiro final

Minha astúcia toda para o ralo. Ou? Desistindo das medidas preventivas em um dois e três, gravando: Tenho que ir, London is calling: now. Não sem antes um duelo. Nossos passos na estrada, como uma quebra de linha, entenda Jack, o horizonte. Você sempre querendo parágrafos, Nick, não dá mais. Agora sorri. Oferece dinamite. Cinco passos, a mão na pistola tira do coldre. Não tenho onde deixar meus olhos enquanto visito o mundo, Jack. Ah, Nick, poeta que se suicida aos oitenta não, atira. Atira! Foi? Quem de mim essa heteronímia assiste, no mundo feito arquibancada girando, Meu deus, sangue na saliva, por que me abandonaste nessa translação, Bate palma com vontade, vai que dessa vez a gente ressuscita.

terça-feira, 10 de junho de 2008

No final dos anos

Quando jovem ele escreveu roteiros de alguns filmes. "O caso dos irmãos Naves". Depois se desiludiu: "No Brasil, o roteirista é um secretário do diretor". Continuou sua atividade de crítico e professor de história do cinema brasileiro, em que havia mais autonomia. Escreveu também alguns romances, alguns pessoais, outros em parceria. Talvez esses livros não formassem uma "obra", com era o caso de sua crítica. Mas de algum modo, e essa foi a interpretação de meu amigo Philippe, ele considerava a obra de ficção mais importante que a obra crítica. Assim, quando morreu o professor de roteiro da faculdade, no final dos anos 80, ele assumiu com dedicação esse novo trabalho: ensinar a criar.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Tiranetes

O ser humano é um bicho imprestável. O veneno? Foi a Civilização que impôs a necessidade de ter "alguém que nos conduza". Nas menores instâncias da vida medíocre, sempre há um que quer mandar, nem que seja somente em outro. E nos escritórios, então? A microtirania, assim como o uso da microinformática, é lei. Futricas, ameaças, sermões; o trabalho é permeado de medo e desgosto amargo, porque há o pulha ao lado (diretor, chefe, supervisor ou qualquer outra variante) que quer impor-se. Essa jactância pustulenta e graveolente que suja o caráter alheio (e, por vezes, o nosso mesmo) é fruto de dois males, dependendo do sexo: ou impotência, ou frigidez.

domingo, 8 de junho de 2008

Bebel é um blefe

Bebel faz a piranha desde sempre: no colégio deu prum menino no banheiro e foi um escândalo. Porque não foi expulsa, começaram a falar que ela dava pro diretor também, o que não era de todo mentira. Bebel foi devassa na vida - fez homem, mulher, novo, velho, bateu punheta pro cachorro e falava de tudo numa boa, com a maior naturalidade. Outro dia, num programa da MTV, Bebel e outras meninas discutiam com a apresentadora, com o baterista de uma banda do momento e com as telespectadoras ao telefone sobre virgindade, tamanho de pau, posições e Bebel soltou uma bomba: "Nunca gozei". No dia seguinte o orkut dela foi super visitado. É que Bebel é assim: fala tudo numa boa, com naturalidade, não esconde nada.

sábado, 7 de junho de 2008

estrelinha

todos estrelas. todos muito especiais. ninguém voltou. ali, aquela noite, aquela conversa infinita. o bar na encruzilada, os retratos, fazendo parte de que ritual macabro mesmo. ali, pra sempre, olhando o céu. nossa pequenez de estrelinha. entrelinha, você riria. as pessoas à noite aproveitam a hora escura, eu quis dizer. dá na mesma. as pessoas à noite saem de si/ de casa/ ou algo sai delas. uma secreção - quase como sonho. o acompanhante, como é mesmo que se chama, sim, o eu, ele dizendo: hoje vou sair, vou escorrer das costas até o bueiro. buaty. ou: vou me esfregar na sua cara que desaba. você vai sair hoje? o que você vai fazer hoje à noite? me liga.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

silêncio (6)

Ana entrou sorrindo mas fingia. Antonio apertou o play e ela assistiu mal humorada o filme que o namorado tinha escolhido para ela. Depois deitaram-se juntos sem dizer uma palavra. Ana esperava que Antonio adivinhasse sua euforia, que ela naquela noite queria beber, dançar e dormir tarde. Henrique, a poucos metros dali, passou a noite alternando doses de cachaça e copos d'água. Quando Henrique chegou ao bar, Agnaldo, do outro lado do balcão, separou para o cliente um copo americano e o preencheu quase inteiro de Ypioca. Henrique sorriu e, enquanto bebia, mergulhou numa infância distante quando antes de ele chorar a mãe lhe adiantava o peito polpudo de leite.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

errância

até onde quereria esconder os execessos? atrás da cacofonia do telefone. arrancando do cansaço os pedaços de alguma coisa anterior a tudo aquilo que havia. não desconfiava de como era possível esconder tanto absurdo. ili lurdes - talvez esse fosse o único nome possível na desmemória - estava soterrada nas escadas que dão para o outro lado dos dias. ela não suportaria, não suportaria, não suportaria, não suportataria, não suportaria, não estava suportando mais. mas ili lurdes voltou de algum lugar obscuro e acendeu um cigarro para o silêncio. colocou o fone de volta no gancho, apagou a luz do navio-fantasma dos pensamentos. mas acho que perdeu um pouco o fio da meada.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

a tua presença

Quantos dias que não via o sol, até que a mulher de sempre veio na minha direção, vestindo toalhas de mesa como vestido e, tirando a batedeira de dentro da caixa, imaginei é o meu dia de sorte, resolveu bater um bolo. Passou um pano, tirou o pó mas não a mim da parede da bacia. Bem preso e pronto para me misturar na massa toda, veio um ovo, outro, a farinha, depois o leite. Mal adicionou o açúcar, as espátulas começaram a girar meu mundo ao contrário, feito cavalgassem homens dentro do furacão da Pensilvânia, as casas sendo arrancadas pelos ares junto com as árvores, voando dentro de um grande raio, muito maior do que a cabeça calva dos homens da cidade, que despidos de seus cavalos, dormiam ao relento e à pouca brisa.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Creme doce

Talvez não esteja clara a ligação das cenas que tenho escrito. Não lembro se expliquei. Em casa estou juntando os parágrafos num único arquivo. São lembranças sobre um professor e a memória das relações emocionais que envolvem o desejo de aprender. Quando estava recém formada, escrevi um conto usando esse professor como personagem. A narradora era uma ex-aluna desnorteada depois de deixar a faculdade, que procurava reencontrar diante dele algum sentido para sua vida. No final havia um contato sexual perigoso por causa da Aids. Minha mãe não percebeu o lado simbólico da cena. As últimas frases eram: "Ali, ajoelhada, eu passei a língua devagar. E com o gosto que bebi o café quente, eu senti o creme doce, que veio fácil e eu engoli."

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Caixa de porcas

Saiu do trem na estação deserta; era já mais de meia-noite. A estação, pudera, era só para os trens de carga, havia anos que não recebia passageiros. O calçamento danificado, mato entre as frestras. O encarregado alçou os olhos mortiços desde sua cabine, chamou-o para ali e disse: "Então é você? Muito bem. Vê aquela caixa de porcas? Ponha-a sob o braço e volte para o trem. Você vai descer numa estação a uns cem quilômetros daqui, coisa de três horas, meia-madrugada. É para o engarregado de lá. Não abra a caixa!". Com a caixa na axila, voltou ao trem que saiu zunindo da plataforma. A exatos quinze quilômetros dali, o trem descarrilou. A caixa de porcas nunca chegou ao seu destino final.

domingo, 1 de junho de 2008

Clark Kent em apuros

Clark Kent não sente vontade de se levantar nesta manhã, há dias sem escovar os dentes, algo o abate terrivelmente. Arrasta-se até a janela, abre-a: Metrópolis continua impassível, como um formigueiro na primavera, uma primavera sem fim. Clark Kent tosse forçadamente, se coça sem coceira, imagina o sol ficando vermelho de repente e seus dedos do pé abrigando uma purulenta micose. Apalpa seus músculos sem gordura sob a pele e suspira. Volta para a cama pensando nas tragédias que acontecerão se ele não entrar na cabine telefônica. Mal sabe Clark que o lençol que usa é proveniente de uma das empresas de Lex Luthor e está cosido com um único e delicado fio de kriptonita. Clark Kent dorme, triste como um marcapasso.
 

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