quarta-feira, 30 de abril de 2008

os dias seguidos aos dias

Não quer sair da cama nesse país. Inventava brisas aos olhos mal-abertos. Seus vinte e nove. Os cabelos, matéria-prima de todos os romances, cresceram. Quem elogiaria? Tira a crosta vermelha da garganta, passa o batom rougindo. O verão dos aniversários, janelas abertas, onde está? Não importa quanta água espalhe pela casa, a secura trilha gotinhas de sangue do nariz. Vai em direção a entrada do gás, aumenta a calefação. Sua mãe diria do absurdo, pelo clima do sangue. Mas não há nada. Seus sonhos de criança se resolveram: os pais estão mortos, os irmãos na terra do abandono e os amigos finalmente falam a língua desnatural das relações. Ela sabe que nunca perderá o português. Nem a neve, nem o vento, nem ninguém.

terça-feira, 29 de abril de 2008

701-U

Ele nunca soube dirigir. Uma vez peguei o ônibus em frente à faculdade e ele estava sentado ao fundo, lendo. O ônibus estava vazio, mas não tive coragem de cumprimentá-lo. Depois nunca mais o vi. Ele morava no centro e só havia aquela linha, como ele chegava à faculdade sem ser visto? Taxi? Seu salário não era certamente suficiente para isso. Mais tarde, quando comecei a dar aulas, tive vergonha de encontrar meus alunos no metrô. Todos sabem que professor ganha mal, mas o senso comum não elimina a vergonha. Eles podem saber que ganho mal, mas não devem ver. Há uma distância entre a informação e o testemunho. Ele pensaria nisso?

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Civilização

"A civilização é algo que carece de sentido profundo. Instituições, ações; a civilização não tem algum sentido". Assim pensava Cícero quando descia a rua em direção à banca de jornal; desempregado, resolvera comprar o jornal para ver os classificados. "Quem inventou Çatal Höyük? Alguém como eu que insiste ver o mundo diferentemente; que bruta azia!", uma farofa lhe cozia o estômago. Preocupado com a azia ("pego o jornal e entro na farmácia"), com o jornal ("ou entro na farmácia e pego o jornal?") e com Çatal Höyük ("eles não tinham jornal lá... mas, e fármacos pra azia?"), pegou-o um ônibus que não pensou em nada. Sob a roda do coletivo, já não pôde preocupar-se.

domingo, 27 de abril de 2008

Pois sem você, meu tesão

A língua vinha em ondas, inundando a virilha, a saliva escorrendo de leve e a língua, no domingo, rego adentro até encontrar-se comprimida. Ele era um cão no meu cu, distante da minha estafa, do enfado, e eu em silêncio tentando entender com o rabo, até desistir porque ele não entende e lembrar "ah gemer" e "hum ai ui". O Dr. Jairo Bouer dizia na TV nas noites de quarta que O IMPORTANTE É SENTIR PRAZER. E eu sinto!! Espórro, me levanto, na geladeira uma Coca choca que eu bebo de cu úmido e uma música ruim que fixa e não sei cantarolar, "eu não abro mão nem por você nem por ninguém". Eu. Minhas palavras se estendendo por um corpo desnecessário e o silêncio grudento nos pêlos. Até encontrar o sono.

sábado, 26 de abril de 2008

afterhours

um gosto de retorno. assim como: um vestido caindo. é preciso voltar. isso: olhar para a porta fechada, dar meia volta, despedir-se, abrir, recusar-se, tchau, a saída: ofuscada antes pelo despeito de quem sucumbe à queda. a queda social (!). caminhar até a saída há muito esquecida, em coragem infantil fitar bem quem quer que seja lá fora, as pessoas não participantes. suas máscaras sem as quais o social abismal estaria fadado ao narcisismo abismo. fitá-las bem, com a educação de quem, pela primeira vez, saiu de si em chamas --- deparando-se em seguida com as cinzas pelo corpo todo, o tato irregular. voltar na rua com o sol que cai, na cara.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

silêncio (1)

Diz a parte engraçada e, na falta de resposta sobre o engraçado ter sido transmitido, continua, parafraseia, faz gestos largos, grita, imita os personagens em vez de descrevê-los. Perde-se, esquece o que o motivou a falar. A empolgação mal expressa se cansa, a voz diminui o tom, os gestos se contêm, cresce a vontade de entender. Acalma-se. Tenta imitar o interlocutor que continua quieto. Torna-se levemente melancólico, faz considerações sobre o humor difícil de quem o escuta. Logo um novo golpe de euforia se veste com uma história que poderia ser boa se dita em segundos, mas que se estenderá por vozes e gestos e palavras desnecessárias.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

invenção um

e no domingo, a língua. ela doía de tão concreta na boca. e dentro da boca: comprimido, céu, a lua - branca e a noite passada. mil barulhos por milésimo de segundo cortando o ar. mentira, repito: uma mentira é uma mentira quando ainda não se sabe se é, de fato, ou acredite. parece mesmo coisa de doido. um tempo inventado é fora de outro tempo inventado que é 1 2 3 e (?). acho que vou escrever um livro As coisas que acontecem comigo. ou As coisas que não. indispensáveis, anyway. e volto: domingo foi a língua que me aconteceu, física e rosa. uma presença me expulsando de uma caverna funda e - inventada. eu invento sempre, que é pra nunca deixar de ser.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

tarde de maio

Fazia um ano aquele outono em que teu pai morreu. Havia um abraço no ar, para renascer numa fictícia primavera. Começamos a empacotar os móveis, os riscos, a trilha sonora. Ventava em todas as direções, o sol era muito claro, a calçada ensolarada. Para onde nos mudaríamos tão pobres? Os caminhos fechavam como cenas de crime. Os amigos nos deixavam à tona, nas margens do desentendimento, se suicidavam. E quando você me tomava pela mão, eram cachorros mortos pela estrada, amassados por âncoras que choveram no nosso único beijo, de despedida. Nos fins de tarde eu me escondia entre os livros e fazia tsurus de papel azul com os dedos de vidro. Acho que não quis me recuperar, mas aconteceu.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Desde agora

A vida toda. Que nossa escolha duraria até o fim? Ou incluiria toda nossa vida, desde agora? A imposição de um destino, eu precisava daquelas palavras. Mas principalmente significavam uma escolha dele, assumida à nossa frente em forma de conselho. Porque não seria um conselho aplicável, enfim, à nossa turma de quinze alunos, porque uma garota desistiu algumas semanas depois para estudar história, outro era funcionário da caixa econômica e nunca se formaria, a moça gorda se formou mas foi estudar canto lírico, outro virou executivo numa empresa de internet. Quem precisava de um destino? Quem iria realmente fazer uma escolha?

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Engendrando monstros

Tem já dez anos que terminei o primeiro grau na escola pública. O ensino era péssimo. Hoje, dez anos depois, vejo que o ensino sequer existe. As condições precárias e os salários de fome fizeram o ensino implodir-se. Entro na sala. Os alunos encaram-me, sou-lhes estranho, muito estranho. A aula começa, um texto sobre o índice de Gini. A professora fala sobre o texto. Os alunos, dão de ombros: "101.6?"; "Não, é 105.1, caráio! Porra, gol do Santos!". A professora: "Perto de zero, mas igualitário, perto de um, mas desigual". No fundo, reclamam dum passe errado: "Porra, Dentinho!"; "Esse Santos é mesmo um time de merda", "Te parto a fuça, seu fuma-pedra!". A professora pergunta; eles não sabem onde fica a Namíbia.

domingo, 20 de abril de 2008

Isabella no escuro

Tem acompanhado nas últimas semanas o caso da menina com assombrado interesse: guarda os jornais, as revistas, imprime as matérias e até deu de gravar o noticiário. Em um caderninho, antes de dormir, escreve ansiosa: "Hoje os peritos descobriram sangue na roupa da madrasta". Como se fosse um acerto de contas. Dentro do caderninho guarda uma foto dela mesma quando criança: entre os pais, aquele sorriso amarelo de um menino que não queria ser. E lembra as palavras da mãe: "eu não tenho mais filho". Isabella, coincidentemente, é o nome que escolheu para si. E, sozinha no domingo à noite, ela freqüentemente abre a janela de seu apartamento para se certificar de que não há nenhuma tela de proteção entre ela e o mundo.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

crônica da quarta-feira passada

Uma região rara de pouco movimentada. Na pista de subir vinha outro verde e branco, na freada pro radar o motorista do nosso fez sinal praquele, estancou e "o time caiu?". O velho resmungou pra gritar "meu filho! é a terceira vez hoje já, você tem que fazer o seu trabalho!". Direito. E o motorista "ih? tá vendo não todo mundo quietinho? só o senhor aí chiando?". "Chiando?! Não sou animal, volta pra escola, racinha ignorante."Três pontos, o motorista batucando provocativo, o velho desceu rígido pro metrô. Guardava como se tivesse sido roubado aquela emoção contida. Quando desligou o abajur ontem de noite, quem imaginaria aquela palpitação? E o motorista lá dentro, pra cobradora assentindo, "ê! velhinho mal-amado".

terça-feira, 15 de abril de 2008

Lupe Cotrim

O auditório tinha o nome de uma professora que escrevia poesias e morreu de câncer nos anos 70. Estava cheio e só consegui sentar na primeira fileira, quase de cara com a mesa de professores que conversavam baixo enquanto os microfones estavam desligados e a palestra não começava. Ele era o mais magro, o rosto quadrado e cabelo claro, olhando papéis cheios de anotações. Não foi o primeiro a falar. Quando chegou a sua vez não levantou o rosto, apenas leu com sotaque francês carregado, se eu não estivesse tão perto provavelmente não entenderia, mesmo à pouca distância sua voz baixa era quase incompreensível. Porque a idéia era incompreensível: "se não fizéssemos uma escolha para a vida toda, era melhor nem começar".

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Ponedelijak: Ponarejanje se kaznuje po zakonu

Mil dinares. E eram falsos. O primeiro tapa que Nadežda tomou foi do pai, dono da loja de aviamentos: "como você me pega uma nota desse valor e falsa ainda!". Tomou outro tapa, com as costas da mão: "Qualquer mula desse vilarejo miserável sabe quando uma nota de mil dinares é falsa. Agora, pegue-a e só volte com um valor que cubra o prejuízo". Desesperada, Nadežda saiu do vilarejo. Em outro vilarejo, morro abaixo, tentou passá-la para um peixeiro; esse viu que era falsa e aplicou em Nadežda outro bofetão. Ela nunca mais voltou para casa. Tentou ganhar a vida como prostituta em Banja Luka e hoje é a dominatrix mais famosa de Belgrado. Aplica tapas na cara de marmanjos que lhe pagam dez mil dinares para tal.

domingo, 13 de abril de 2008

Padê e Pão de Queijo

para o Fabinho

A noite foi bafo, fia: padê até branquear o edi, os cafuçu me cheirando tuda por baixo e por cima pirocão uma loucura, minina, uma loucura...! Faz poc-poc na calçada no caminho de volta pra casa, arregaçada, dois quarteirão e a linha Kátia, óculos enormes, cabresto, não-vi-nada. Magnífica, toda diva. Entra na padaria, o mulherão, peitos imensos, pede pão de queijo e faz carão pras coruja da ajeum, num-to-boa, as idosa comprando pão antes da missa corujando ela linda, gostosa, picumã desfeito; entra duas gays casadas camiseta apertada óculão picumã que nem um katrina, corujam ela também, ai-meu-cu! Deixa as moedas no balcão, arruma os mamilo, apalpa o papelote no sutiã e sobe de elevador: belíssima, mulher, dominical.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

a lona do Mostradinho

Surgiram na arena. O mágico com cigarro na boca, o palhaço sem metade do pó na cara, correndo atrás da grande bola, a última atração. " No Mostradinho minha gente, é dia de festa!", o locutor dando encantos na voz, "com oferecimento das motocicletas Kilimanjaro" e a trapezista meio gordinha lá no alto se espreguiçando, no maiô rosa furadinho entre as pernas, "você na primeira fila, não se desespere", e os tambores rufando, "ê viva que alegria, gente boni-" e o loucutor tira o pé do globo ensandecido girando, despregado das tábuas colocadas de calço, e lá dentro, a Kilimanjaro bufando gasolina no escapamento, Raulzito globetrotter emociona com uma ave-maria pela sua mão, já longe, coberta pela areia.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Mijnheer Jansen e a vida nova

E eis que surge uma nova natureza, senhores, bem sob vossos excelsos bigodes brancos. Uma nova natureza - sem pólen ou sementes, como diz mijnheer Jansen - mas não feita de tubos amarelos - como propugna mijnheer Jansen - mas de pilhas e baterias velhas. Uma nova natureza artificial, viscosa de ácidos ultrajados, enferrujada, de papelão cozido. Pólos esquecidos. Já viu uma pilha degradar-se na natureza, Maria? Primeiro ela enferruja e fica qual uma salsicha frita, de tanta ferrugem, e suas vísceras de carvão e ácidos vai amalgamando vida nova; sim, Maria, uma nova vida que altera a vida ao seu redor e, depois, toda uma nova civilização.

domingo, 6 de abril de 2008

Para que se prolonguem seus dias na terra

Já velho e ficar órfão: desacreditava. Cinqüenta anos, ele próprio com netos - e o pai e a mãe ainda vivos, fortes, sem sinal de desgaste. Começou a se preocupar. Aos sessenta já estava preocupado o bastante. Não é que não gostasse dos pais, mas aquilo estava errado. "Seu irmão?", perguntavam do pai. "Esposa?", da mãe. Começou a sentir seu próprio corpo falhar: pedra no rim, catarata, câncer de próstata. Foi ficando senil e desconfiado: os velhos nem tosse, nem gripe, nem nada! "Você devia dar graças-a-deus", repreendia a esposa, enojada. Aos setenta teve de ser internado, definitivamente. No leito da UTI, viu os velhinhos entrando, intactos, pela porta. E foi se sentindo pequeno e fraco, como se ainda não tivesse nascido.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

bossa-nova

Queria o teu corpo como quero o poema dessa paisagem. Mas só sei tirar retratos. Dar notícias ao amor fora das bulas, das pílulas, dos espelhos ensangüentados, não. Você corre atrás de mim, bolero do corpo que me dribla, mão alçada pela cintura, me dá os pêsames pelas cinzas de nós dois que ainda boiam sobre a água suja. "Não quero essas imagens embaçadas que você faz." E me olha nos olhos do poema. "Veja, nunca te darei as palavras depois da febre." Me esqueço, escrevo: é dezembro de um ano iluminado, as montanhas, a brisa que vem do mar, e, atrás dessa duna, vem o dedo do seu deus tocando o céu da minha boca. Aproveita, dorme no meu ventre, suave asa de mariposa, seus três dias de sangue agitado.
 

Free Blog Counter
Poker Blog