terça-feira, 7 de abril de 2009

respeitável público

Invado o dia para dizer: este blogue acabou
Sem particular tristeza a imprimir
caixa de panetone ringtone babel
gostaria de agradecer aos que escreveram
aos que não escreveram e leram
aos silenciosos devo dizer que hoje entendi que enquanto homem eu sou um de 32 anos
prestar homenagem as morsas macho do pacífico que são coitadas porque se alguém diz "o morsa" logo se confunde com o código morse em que convive toda imaginação literária dos caçadores de acasos
e principalmente aos que viveram dizer como alguém dizia:
beijos para todos especialmente para nós.

*cheers!
*até logo.
*adeus.

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terça-feira, 31 de março de 2009

Ungeheueren Ungeziefer

"Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt." Embora eu nunca tenha despertado na minha cama transformada numa criatura rastejante ou praga doméstica, muitas vezes, depois de frações de tempo em que meu cérebro parou de funcionar, me vi novamente localizada no mundo com a sensação de ter esquecido a carga social e genética que me faziam estar ali, fazendo o que eu estava fazendo. Não me senti como um besouro, mas um inseto genérico moldado por aquela substância cujo nome esqueci, duríssima, que compõe seu corpo crocante e mantém represado o plasma indefinido que se traz dentro.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Clemente Falcão e Engenheiro São Paulo

Sobre o mapa, está traçado tudo o que já houve. O techo de trem que vem do Brás ao Tatuapé aparece liso, à distância; mas se aproximo a vista, duas bolotas na linha preenchida por tracejado preto e branco. Duas estações antigas que ressurgem das sombras e do pó nas quais a modernidade as jogaram. Gritos do passado, traves de corberturas que clamam ou brotam: esqueletos destelhados e despossuídos. Afinal, por que no Tatuapé há o Cemitério da Quarta Parada, sendo que só há duas estações de trem? As outras duas, presas no passado com seus trens defuntos, vivem na memória dos mais velhos (poucos). Quem diria que o passado de cinquenta anos seria tão difícil reconstruir? Arqueologia das novidades.

sexta-feira, 27 de março de 2009

monólogo

you are my center/ when i spin away/ out of control on videotape/ on videotape
Radiohead



o seu peito meu_essa fresta, por que não?_chega mais escutarei_sozinho nas tardes de abril_o barulho dessa coisa_ter saído sorrindo dizendo que sim quando não (isqueiro sem gás) não pedi seu número_pensei praquê_sabe, ganhei um bom-bom esses dias_guardei na bolsa_vai passar pra frente né_lembro da sua voz (furtiva lacrima) convencida perto cinco anos atrás na buaty limpa_eu, você em cada bueiro por aí_seu diabo traz agora a adolescência passando o emprego como uma roupa_continuando_realmente pentear cabelo não é pra mim_o número meu anote é mil novecentos e sessenta e quatro oitenta e nove dois mil e nove. ali na esquina vou comprar_pão_p.s. parabéns pela cueca e pode ficar com o batom.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Diário de Estância, XIX

que espécie de amor é possível nas Laranjeiras?, posto melhor: de que guerrilha bem ao fundo nasce a compulsão de ser fiel? Cano à boca, juramento à praça – figurar a vanguarda da fuga, os pés pelando. Nunca discutiremos política, Peter. Temas de filmes-catástrofe dos anos 70, talvez, mas nunca política. Desertamos a praça e fazemos serenata aos nossos amantes ausentes. E que espécie de amor é possível numa praça? Somos tão ordinários assim, tão comuns (tão comunais)? Os dias rateiam, você dá fé de interurbanos, gelatinosas juras de amor-sublime-amor. Creia-me (believe you me), você acredita. Velhos espigões tremem ao sol. Outono. Quanto a mim, bom, o que posso dizer? Casei-me com meu trabalho.

quarta-feira, 25 de março de 2009

duelo-dueto

Tudo isso começou, de certo modo, nos corredores de uma faculdade de ausências. Eu não sei quando foi a primeira vez, você sabe?, mas sei que uma das segundas foi em frente a biblioteca e alguma contenção. Distante o guardei como um cumprimentar, aos tantos. Quantos anos isso, dois ou três? Não fomos um amor à primeira vista, nem deixamos de ser. Sempre por inteiro. E, no intervalo, houve um café na História em que acostumados a falarmos com outros, não nos ouvimos os paradigmas da ruptura: é pelo novo, isso, conversa de futuro pontuada pelo já é. Não me estranho em dizer que foi esse blogue, teu convite, que nos fez, os melhores amigos. Texto. Agora que somos outros já não tenho mais medo que isso aqui acabe.

terça-feira, 24 de março de 2009

Cortina japonesa

Em meu quarto de menina, no prédio em que moramos antes do pai morrer, cabia a cama e um armário de duas portas. Tinha um espelho na parede e cortina japonesa sobre a janela basculante. Eu achava a casa da Tamy mais bonita que a minha. Não gostava tanto dela, sim de sua casa. Um dia me fechei no quarto, sentei de costas para a porta e tentei colocar um lápis de madeira na vagina. Talvez tivesse uns 10 anos. Era um lápis grande e grosso, brinde da madeireira que fornecia tábuas para a marcenaria do pai. Às vezes, sentada no banco do piano, tinha a impressão de ver seu fantasma atravessando a sala. Depois minha irmã cortou todo o fio do telefone com a tesoura.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Domingo, manhã

Os olhos não se decidem a abrir-se e olhar para o branco manchado no teto. Tampouco as pernas decidem-se a pôr-se fora da cama. A modorra manda, reina e vinga. O desalento ancestral que vem dos ossos e manda morrer. Vislumbra uma cruz de concreto, à ponta de um montículo e à sombra da árvore. Mas não é vontade de matar-se é só de estar longe e em paz. Existe uma vaga alegria: está engarrafada e na geladeira, esperando que a rolha seja sacada. Quando se levantar, começarão as demandas, os pedidos, os ralhos e sarilhos. Tudo de novo, sempre e eternamente. A alma não pode existir. Se existir, as aflições recomeçarão no pós-vida. Por issom atém-se piamente que a alma, senhores, não existe, por um bem maior.

sábado, 21 de março de 2009

I ato último

/–muito prazer, o prazer todo meu –prazer meu sempre –faço sua mala –ofereço minha vida meu flanco minha casinha –te dou minha mala –aproveito tudo –detalhe esse seu sobre o olho, não esqueço –me diz onde assim –então me cata –me agacha/ (queda) –quando vamos –pra onde –é para que voltemos não importa –pra onde caralho –pra casa –essa casa não existe –por favor –(há muito a mesma música não para) não posso –você adia sua entrada no mundo –como entrar assim impossível –você não ama –eu também sou gente porra –paralelamente –agora pisa bem fundo machuca mesmo pra onde hem –(queda) pouco uma casa no campo mudamos daqui –mas num piscar de olhos (uma imagem turva)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Diário de Estância, XVIII

Não tenho com ninguém. Com efeito, rezo para ninguém me aparecer no caminho de casa. O cinema, comunal demais, não tenho estômago. It's a long way (deram pra chiar, esses fones de ouvido). É montar que a vejo sozinha, passando a mão pelos cabelos. Conforme: boa noite e sigo adiante, atrás dum banco só meu. Ela se afasta, agora o assento vago, me aboleto. Não digo nada, não tenho nada a dizer. Conforme. Pergunto o que tem feito, apenas, há tempos não a vejo, bastante para preencher o longo da viagem. Ela diz que tem andado retirada, entre a tese e o emprego na Secretaria, não sobra muita cabeça, menos que nada a dizer. Mas agora, de monografia entregue, talvez torne a ter vontade de ver gente.

quarta-feira, 18 de março de 2009

secretária do invisível

Baby, é uma espécie de catatonismo oceânico. Que nos singra, que te encolhe, que me molha. Tremendamente o canto de uma parede com a outra, fico pra dentro feito galinha. Hipnotizada, anos de quilha da prancha. Então, acorda!, os dedinhos avermelhando e, mulher!, onde estás?, Que assustador. Uma vaca a receber instruções de uma estrela marinha a fim de um homem na idade do tubo. Eu vendo da crista?, foi de espanto!, essa cara pra descarga de vampiro, a dar refluxo em texto. Segredo: o saara é mesmo dentro da gente e tantas conchinhas entre a sede. Acabou outra vez então me aperta pelo punho venho lá no último destinatário e o primeiro é o mesmo. Ao que compreendo que o mundo está entre nossos umbigos. b o c e j o doce.

terça-feira, 17 de março de 2009

Malandragem VIII

Encontramos uma kitchinete pequena e feiosa numa travessa obscura atrás do Hospital Sírio Libanês. O proprietário demonstrou uma gentileza surpreendente ao telefone. Compreendeu perfeitamente que eu era estudante, meus pais moravam em outro estado, eles tinham casa própria e podiam ser fiadores SE ele aceitasse a escritura de outro município como comprovante. Fomos empolgadíssimas até o escritório no Largo São Francisco. Ele nos convidou a sentar, serviu café, discursou fartamente sobre sua compreensão não burocrática e mais profunda da função do fiador - um documento não é nada sem a compreensão do que significa em termos reais. Rafa invocou que o homem estava dando em cima de mim e cancelou o negócio.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Observando o cristianismo (de fora)

Olho de observar. No chão da catedral, em mosaico digno de parede, não de chão, estão, em espaços regulares e entre delicados ramos estilizados três cravos cruzados ao meio: um está na vertical e os outros, obliquamente, entre 30, 35 graus de deslocamente, formando um xis sobre um i. São os cravos de Cristo, claro, estamos numa catedral, uma catedral ao sul. Mas o que dizer da catedral de uma capital do nordeste, que tem um entalhe de madeira dos cravos, igual ao do chão do outro lugar, ou seja, três cravos: dois nas mãos e um pelos calcanhares. Porém, o Cristo anichado logo abaixo traz cada mão com seu cravo, pregando-as à cruz, mas também cada pé com seu cravo, ao invés de um para ambos. Quatro no total.

domingo, 15 de março de 2009

Goiva

Ela abria os olhos de pioneira na gruta clara e brilhante / meu amor, amor são os dedos se mexendo / na nossa cama contou a história mais triste de sua mãe: Tinham acabado de se mudar para o topo de um prédio, ela e o marido, ainda sem vizinhos, e numa tarde de dezembro abortou durante horas, não havia telefone, o filho aos cinco meses e ela teve tempo de medo e de chorar e se dizer: "então é isso" antes que o marido chegasse. Cor marrom lambendo os dentes, meus mamilos e a tua mão no ventre: "eu nunca deixaria que isso acontecesse com você". Subjuntivo sincero de criança. Eu vejo dois úteros grandes, incertos, amorosos / O nariz enterrado nos pelos, fecundando a terra à vista

sábado, 14 de março de 2009

II ato

–está perdido de uma vez agora –o seu nome um último peso em movimento –pro fundo do mar pra sempre –quem diria tão imprevisto –estúpida garrafa náufraga –estou no mudo –bem o fundo salvará o dia –não ouço nada do que você fala não entendo –eles também quase não o escutam –eles? –sua fala desaparece percebo com clareza –é uma palestra que ofereço às quartas (telefone celular na plateia) –um ombro exposto e pequenas contrações no paletó verde-claro –você é disperso –quem poderia lidar com tamanho vazio –claro o público para mim é uma questão, de reflexões –faz sala pra mim agora então –mais um pouco vinho –vou embora –fica –já termina aqui –pra sempre –pois então (vinho para todos os lados)

sexta-feira, 13 de março de 2009

O filho interno

Um ano a gente já diz e pensa da criança que tem estar andando falando contando piada de papagaio usando o peniquinho se formando em filosofia lendo garcia lorca ("sin ningun viento / !hazme caso! / gira, corazón / gira, corazón") você vai ver tá lá parada e baba nem saiu do lugar pega a pasta de feijão lambuza a testa te olha e quase diz: pedra. O brazileira!preta em 2002 era comentado em todas as revistas semanais. E olha no que deu. Aqui é o editorial da lua cheia. Fim de abril está chegando, hipócrita e sem resquícios de crueldade. Te dou um dado? Desta vez acabo em seis.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Diário de Estância, XVII

Peter voltou de Belgrado, desejei-lhe boa sorte com o calor.
Boa sorte com o calor, Peter! Ele é tudo, menos humano.
O crédulo bem poderia fazer confusão, achar que isso aqui é denodamento narrativo. Que o círculo está completo e as crianças que se recolham.
Que tive de trazer Peter de volta, sob pena – lá sei de quê.
Que imagino os contornos da praça abertos, glacê glacial. Hora e meia depois da queda de nossa bastilha magnética. Sorte de principiante. Mas
estou pensando nos meus amigos. No trovão lá fora. Em dedicar-me mais à prosa.

quarta-feira, 11 de março de 2009

pedaço de mim

você que já viu outonos e primaveras, que não lê horóscopos, que é generoso e não sabe falar de amor, que gosta de cachorros e palavras claras, e sorri dois sorrisos como ninguém um largo e aberto e outro que te trava todo o gesto, que gosta de chico, que canta com sotaque de graça, você que não me deixa te roubar, que quando chega me retoma cheia de esperança a retina e a conjugar renitente o tu que desconheço, a dizer, tu tu tu não me deixes será que é essa a conjugaria? não me dê esse deixar-me prometo nunca mais nos mal comunicaremos a não ser pelas nuvens e tecidos de algodão entre esse vinho do porto lágrima aberta a janela durmo por saída lua farta feito o diabo, leva meu neruda, volta, me desculpa, me revoa,

terça-feira, 10 de março de 2009

Malandragem VII

Esse era meu problema. Era mais difícil entender as complicações da Rafa. Segundo me contou, sabia que era lésbica desde muito nova, entre doze ou treze anos. Foi apaixonada pela professora de artes, depois pela amiga da escola de inglês. Nunca discutiu o assunto com a mãe mas esperava que as pistas fizessem o serviço. Música punk, cabelo curto, cortava com "não me encha o saco" qualquer conversa no estilo "você tem namorado?" Parecia realmente uma versão moderna de sua mãe, empresária que entendia de prospecções e graus de investimento, bebia gin e assistia shows na Broadway. Sua mãe me assustava, naturalmente, mas eu vinha de um mundo em que as pessoas jantavam pão de forma diante da TV.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Branca-de-neve

Numa avenida poeirenta de Cotia, a moça agitava uma faixa: "2 e 3 dorm." e logo abaixo, uma seta vermelha. O ônibus estacou bem ao lado dela. Estava vestida de branca-de-neve, mas era uma branca-de-neve trigueira, à moda local. Era a tarde de um sábado e a moça, vestida de branca-de-neve, estava no turbilhão de poeira e sob o sol forte. A faixa, presa ao seu pescoço, oscilava sobre a sua barriga. É estranho tentar reconstruir a vida de alguém que se vê a esmo, como num acidente visual. As pessoas atêm-se somente ao fato concreto e momentâneo, o resto é divagação. Mas a visão veio: vieram seus filhos correndo de uma casa sem reboque e com gato de energia elétrica. E um marido bêbado e violento. Era sábado, era dia de clichês.

domingo, 8 de março de 2009

dosimii le dose tah cehgadno

olha meu tio ele falou que um dia quando ele estava na mata ele viu uma nave pousar ele dise que foi lá ver o que era ele disse que viu um ser estranho saindo de dentro da nave ele disse que o ser chegou perto e dele e combesou a falar uma lingua estranha e depois ele comesou afala portugues e o ser falou para ele que ia leva ele para dentro da nave e o meu tio falou que não ia não pois o ser falou que ia mata o meu tio e meu tio se jogou para o chão e o ser consegiu acha o meu tio e meu tio ficou sem palavras e o ser pegou e meu tio e tipo abrasou e meu tio falou que parecia que o ser ia rasga ele mais o ser andou e foi embora eo meu tio falou que numca mais ele ia entra na mata sozinho de noite pois esse caso foi yreal ele mecontou.

sábado, 7 de março de 2009

III ato

nesse parecer todas as coisas são.
Wallace Stevens
–desconhecido você para mim –eu era minucioso hoje sei –eu –saía realmente tonto –você rouco era conveniência isso sim –bem pontual como uma tristeza acho seu amigo disse –particular demais cara seu modo calado –impossível você querer outro –diga lá de um modo razoável –descansava na almofada como quem não, nada –nada, café demais –pão –geleia, requeijão –bonito você receber bem –domingo de manhã depois de sábado –o sol batia (abre atrás uma janela) –como você fala –falo mesmo (música fininha) agora
–viu –quê –foi muito triste agora –de forma alguma –inexplicável ter ido lhe conhecer –não dá pra entender (olha ninguém) –ninguém –toda hora

quinta-feira, 5 de março de 2009

Diário de Estância, XVI


Desculpe, Gabriel está na cidade. Tanto que fomos parar numa outra praça, aquela da coca. Mas ficamos na cerveja, e bastante cordatos. Essas coisas das quais posso nunca mais voltar me metem um medo – você não dimensiona. Tenho ganas de te abraçar, pedir que você fique, aqui, sempre, esqueço que o que nos constrange a te amar tanto e com tanta – não ria – pureza é justo a mobilidade. Vê, a praça – as praças – que coisa estanque. São as pessoas que caminham o mundo, somos vocês. Desculpe o atraso. Eu te amo com silêncio com humildade com tudo aquilo que você já veio a esperar de mim e na certa acha graça (não duvido que você me leve a sério, isso já aprendi). Mas a verdade, a verdade é que você não entendeu nada.

quarta-feira, 4 de março de 2009

descomunal é o calor desses últimos dias

acordei tendo certeza de que não te amo mais. só consigo ouvir os guindastes e serras elétricas dos vizinhos penso em dentaduras que tremem sobre os criados-mudos ao passe do metrô. é março, o mês levanta o audaz no nome reúne o mar e termina-lhe. me levanto no espelho do banheiro encontro: SIM MAR VERDE com um batom velho. amor é bicho instruído. e muito longe o estádio de futebol. não sei para que os gatos torcem. hoje vou tentar dizer um pouco. mas tenho medo de que minhas palavras sobre nós como oxigênio sobre os braços dos guindastes desencapando ferrugem nas vistas que os homens fazem dos portos, como se ainda usássem chapéus de feltro e sobre a testa uma trilha de gotinhas esbórnia de whisky com doces de ovos

terça-feira, 3 de março de 2009

Malandragem VI

Assim adiávamos a questão. Eu não conseguia entender o problema. Sua mãe me assustava, naturalmente, mas eu vinha de um mundo em que as pessoas jantavam pão de forma diante da TV. Rafa era sempre tão forte e determinada, tinha essa relação estranhamente próxima e brusca com a mãe - uma rispidez sinuosa e inteligente. Por que não podia falar diretamente? Um dia juntei toda minha serenidade para iniciar a conversa com calma. Poderíamos combinar uma estratégia, um comentário casual quando Letícia saísse para o trabalho: “Mãe, a Kátia vai dormir aqui. Várias vezes. Não estranhe.” Rafa se recusava. “Mas por quê?”, ”Não quero. Pronto. Não me encha o saco.”

segunda-feira, 2 de março de 2009

Imprensa

Acordamos na Ubatuba cheia de chuva - tautologias do sono - e fomos para o salão tomar café. Havia também na pousada uma família expandida do interior, muito alegre, que estava a ocupar vários quartos. Sentamos e entre iogurte e talhos de melão escutavamos a ruidosa e alegre conversa. Um deles reclamava: "Não vi o noticiário ontem"; o aparente patriarca retrucou: "Noticiário é sempre a mesma coisa; o que você quer saber que eu te digo. A bolsa? Fechou em queda. O trânsito? A marginal? Continua parada. Futebol? O Corinthians perdeu. O tempo? Hoje chove". Riso geral dos convivas. Mastigando sucrilhos com iogurte e devorando as talhas de melão, pensei, e não é que é isso mesmo? É mais do mesmo.

domingo, 1 de março de 2009

acaso

É um caso de amor fatal. Eu este mês esqueço da conta de telefone, quanto a mim passo perto a sua casa pincho a campainha e saio correndo, a gente fica fugindo de se encontrar e se encontrando de fugir, dá pra entender? Amanhã ele vai embora de avião pra Amsterdam vai ser o general do ar para quem eu conto todas as minhas estórias vividas – e bem vividas – todo dia trinta até que me dê na telha. Eu nem vou te dar meu endereço. O acaso salvou mais vidas que toda a jogatina a penicilina as aerolineas argentinas meu amor daqui pra frente é um pulo e quero ver quem é que vai junto, vou eu vai você jet-lagged e canhão de luz pra dentro e fora desse calor com rosas, azul, suor, plutão.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

cheirando porra ontem,

moço, estou lendo sentado na praça aos pés da árvore grossa. -foram- tRistes Penas novE anoS ATrÁs (vendo) e depois, menos moço, muito provisório aprender complicado. e provisória a palavra, junto com a dor. jamais durável. sempre outra coisa de novo.diferindo. hoje explícito gosto, as ideias rodando-sempre na mesma velocidade embaraçada. ampliando uma fineza rouca! eu (escutei vendo) e a atenção ao olhar a frente do oceano foi e ainda é uma garantia forte de traição (tradição). E o rio. E as nuvens no mais das vezes. não posso ser alinhado só porque vivo conformes inevitáveis. conformado e forma. cacete! quero biográfico dizer biológico, sentir o farlfalhar desse fora __________ lá!

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

a morte do autor já não nos comove, como se nos assemelha esta morte, como somos dele a sua fisionomia pura, a sua gestação de densidades que jamais saberemos o teor... a liberdade, a sua voz... é agora que temos dele a ilusão biográfica, os seus sóis em ramos trincados e os ossos saindo como petalas em um corpo de esferas mudas, decaídas, como o vento passa entre as janelas e se choca nos lençóis de feno... esse ar quantificável, o empunhamos! tão logo sabemos para onde ir e o medo não mais degola! Degola! o tempo, o tempo das sombras aquecidas pelo nunca... o frio da amizade e um coração para cada homem.......................................................................................

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Diário de Estância, XV


Confete encruado entre as pedras portuguesas. O ouro escapado, mina nesses espaços mínimos. Vocês estão bastante quietos, afinal. Não, creio estar falando dos corpos. Como o fim de um disparo. A praça cheia, já não se dança nada. Voltando do trabalho e a mente cumula notas para um romance. O lodo que fazem os corpos, romances, tudo o mais que não se escreve. E pesam, pesam terrivelmente: os corpos, as coisas – as coisas se acamam, afinal. De tudo, nosso tempo, nossa praça (repleta, perplexa, acabou?), tem-se a mesma vista. Onde tudo estonteia e depois cala – a pequena causa de seguir. Talvez amar. Serpentina nas sandálias, o Carnaval toma o rumo de ontem. Eles, não sei o que fazem – farei o mesmo.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

quarta-feira de cinzas no país

Amanheceu. não me lembrava se o sol vinha ao leste ou do oeste até me atravessar a estrada que nos levava pra casa, onde nos fins das tardes à claridade pontiaguda abaixávamos o pára-sol com o olhar incendiando as manchas de poeira seca no vidro. Então eu soube: para lá é o lado do oeste, isso mesmo, a raposo tavares corta meu estado, pés fincados, pensei na união soviética, rodei-me 180 e lancei os braços em ordem: leste, oeste e norte, sul. Por um segundo soube para qual lado de dentro do meu apartamento vives. Encontraria meca? talvez, nalgum estudo mais apurado, mas isso de rezar é coisa que só sei fazer imóvel, em silêncio e para ninguém. sempre estive atrás de uma palavra que me abrisse mundos. Agora já não sei mais.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Malandragem V

Marcamos na pizzaria do sacolão. Fui até o caixa eletrônico mas só tinha dez reais na minha conta. As mesas estavam vazias e sentei no lado de fora. A Rafa chegou no carro da mãe dela e ficamos um tempo num assuntinho qualquer. Então contei do cineasta que eu tinha encontrado no sábado. “Cineasta?”, “Parece que ele fez uns filmes.”, “Rolou alguma coisa?”, “Rolou.” Ela ficou quieta e depois me olhou irritada: “Por que você me conta essas coisas?”. “Achei que você preferia saber.” Ela balançou a cabeça e só disse: “merda”. Eu estava toda carente na verdade, e com fome também. Perguntei se ela tinha algum dinheiro, meus dez reais eram uma triste piada. Ela ficou boazinha e buscou um pedaço de pizza pra mim.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Dissuasão para leigos

"Não adianta, meu filho! Nacionalidades não se formam a tapa e este povo é amorfo, guia-se só por seus próprios interesses: comem, trepam e defecam. Que esperar? Você não está na Anatólia dos anos vinte e nem tem capacidade para transformar-se no motor da raça. Recomendo que vá embora, suas ideias são boas, mas não há espaço para elas. Ninguém quer pôr a cara a tapa, não senhor. Já viu pedras arregimentarem-se e lutar por ideais? Pois é, o que temos aqui são pedras, meu filho. E não há força que as demova do cotidiano aplastrante. Eu tinha um professor de língua nacional que dizia que o país somente melhoraria caso, um dia, houvesse uma revolução onde rolasse muito sangue. E eu acho que ele estava coberto de razão."

sábado, 21 de fevereiro de 2009

ai! café velho

é, também, por exemplo, dizemos assim, o fulano também, eu também, o que você vai fazer hoje?, o que você fez hoje?, nada, vou pra casa, pra casa? (algo difícil de se dizer, penumbra), pra casa?, eu fico lá sem encheção de saco, onde?, na sua casa?, é na minha casa, tem a maior produção, desfile, na minha casa, ei fiquei lá dias também antes de sair agora, e encontrar com você, sabia, sabia, estou fazendo uma autobiografia de performances, sem público, registrando tudo num fotoálbum, chama freak sem perigo (um barulho caindo), ATENTO, no meu apartamento sobre o sofá sem amigo, sem eficácia nenhuma, passos, essa brecha na ordem das coisas!

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

óbito do autor

que te dou um dado confessasse haver escrito um de seus posts para mais de mil, coisa que admira e consterna. o que não admirará a ninguém é se setelinhas não tiver nem dez. você, leitor, que nos lê e não comenta, saiba que sofro de urtigas e se escrevessemos para formigas alfabetizadas, as trilhas seriam a carne, so cute, rói rói le roy. ou todo leitor é um silente? conto: o sete linhas está para fazer um ano, dúvida: alçaremos o sétimo mês desse ano? enquanto estamos aqui (get out of town before it's to late) cabe dizer: sexta-feira agora é dia de ninguém! e, saibam, em nossas cápsulas nasce do umbigo essa trilha de açúcar: dou-lhe: umas palavras, minha vida, pago-te com um piparote e adeus, falem com a nossa caixa postal.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Diário de Estância, XIV

Ah, você de costas compridas, pernas e braços; quão pouco criteriosa a tua perfeição. Detesto me ver desse jeito, fica frio, não somos moleques. Talvez você não devesse beber tanto, eu sei, essa é velha. Estação e sursis, a próxima é minha. Teve uma feita, uma moça deixou um drinque alto e colorido sobre a mesa e foi mandriar pelo bar uns dois quartos de hora, não me agüentando, fui lá e tomei. Ela voltou cheia de dignidades, ao que tornei: “mereça seu drinque”. Meu take sobre o amor deve ser parecido. Agora sei que os poemas não vão para parte alguma, e hoje a praça glosada de sol. Gostaria que o choque se figurasse, no entanto. Agora tenho um emprego mas minha educação sentimental vai de mal a pior.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

coletivo de pássaro é avião

amor e maconha em questões: a violência, a paranóia, o sonho, o tédio. mas é tudo no mundo careta mesmo como a gente anda existindo? ou é só maconha e amor demais? chego ouvindo oh yoko, bolando um post não tão adolescente. mas, blog, eu estava no Rio até meio dia atrás,mal aí, ismar furei, e ô calor vida encoxada e fiquei pensando no cazuza, né, marcos, o Rio do cazuza já era? sei lá, de repente, o arpoador lindão eu nunca aquela espuma eu lá na suíça, sabe, eu VI maçãs que crescem em árvores. nada mais me assusta. achava-as inventivas, as maçãs, de repente existiam rolando abaixo. dois meninos gêmeos correm na praça da paz de bermudas amarelas e camisetas brancas, rapaz, os miúdos mesmo já têm toda nossa precariedade e coragem.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Malandragem IV

Peguei minhas coisas e fui pro banheiro. Natália perguntou se podia ficar comigo, eu deixei. Tirei a roupa e ela ficou me olhando. Enquanto estava no chuveiro falamos um monte de coisas bobas, depois saí e me enxuguei. Fomos deitar no quarto dela, que tinha bicama. Ela pediu pra eu contar uma história, contei a história do sapo, acordamos no outro dia, troquei a roupa dela e depois comecei a me vestir. Tirei o sutiã que estava usando e peguei outro. Natália disse: “Você dá ele pra mim?” Aquele sutiã tinha custado vinte e cinco reais. Eu ia ganhar cinqüenta pra passar o fim de semana com ela. Ela não tinha peito nenhum, nem ia poder usar. Mas ela pediu de novo e eu dei.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Futuro

Num estado de direito altamente democrático, o cidadão aqui listado, de número de RG escandido acima, CPF publicado abaixo, é processado pelo Estado por recusar-se a consumir. Sendo o consumo um dos pilares da nossa sociedade e civilização, o cidadão arrolado subverte a ordem e paz garantida pela obediência civil. Ele rasgou seus cartões de créditos em praça pública, conforme detectado por nossa polícia, não trabalha e recusa-se a comprar. Assim sendo, com base nas nossas leis, o cidadão é uma ameaça à sociedade e à nação. Como se trata de um caso grave, cujo tratamento já incluiu a internação contínua num shopping center, o referido cidadão será enforcado, sem direito a recurso, em defesa ao nosso modo de vida e à democracia.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Terça-feira, gorda!

pra betty, pra laura e todas miguxinha

eu vou pro baile // e vou sem calcinha. minina, nessa vida bueiro conseguir o cafu que não seja de elza a neca grande e gorda batendo mole na nossa cara padê barato biquini de chiclete cobrindo meio mamilo cada, e arranjar marido!? a gente vai pra rua ahazando, fazendo as potranca betty e eu, chuchumba, dublando a rihana SEM moicano porque a gente não é obrigada, chocando a família brasileira, "sophya me ajuda!" as barata querem levar a betty embora, ai que sabão é esse creuza?, to linda e suja, laura de vison na aurora, a betty volta e a gente anda, poc poc no ori, porque na calçada é rasteirinha, havaiana gasta, mexe pra você ver, tem gente que come!

sábado, 14 de fevereiro de 2009

do digitaria

o momento da curva foi exato. estávamos no carro com uma música sem saber se descer em ouro preto ou seguir para a cachoeira da mari. a luz tinha ficado mais clara, eu pensava que a luz tinha ficado aberta. o carro estava cheio de pessoas de caminho indeterminado olhando o dia nascer. ficava mexendo na janela aberta!! desci na escada RACHANDO e abri a porta com chave. eram elas de novo e iríamos voltar para outro preto. era uma coisa (2006) a gente disse no quarto ouvindo. quieto eu frisava. de repente olhei pra frente vi pelo vidro: a estrada chegou num menino andando de fininho em cima dum viaduto (bh). a mecha dela era movimentada, olhando do lado de trás (do carro), balançando. todo mundo desceu.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Ávida das tardes! Tudo é matéria de livro, toda intransigência, o vagão inteiro. O pensamento, esta rebelião das formas repetidas, intermitentes... teu sangue bravo na rasante de uma primavera, amamentando o vício da vida. De uma escuridão calórica. Era. Um narrador por toda parte, sem se justapor no tempo, sem paralelismos, campo narrado de tudo até tudo. Na coincidência das partes o parentesco introduz o elogio: desfiguração. Incontinência verbal, jorro, filho. Raiva, política do ar ou mimetismo relativo às grandes massas, os grandes animais dormentes como a rocha, a nuvem, os excessos, o mar rocinante. As oliveiras. A suavidade é bem vinda em um rosto voltado para o nada.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Diário de Estância, XIII


Aprendemos uma nova palavra hoje, crianças: recursividade. Que é quando as coisas dentro das coisas dentro das coisas. Como vim parar nesse escritório? Não sei, foi de repente. A praça não me espelha nem eu espelho a praça. Transitamos (antes de mais nada). Não teve ensejo de pensar o mundo todo. Mas meus braços, pernas, olhos, meu sexo arrogante, o que contiveram? Que diabos abarquei? O que deu pensar? Não se pode ter tudo. Isto não me interessa. Certo, à justa. O que se deve? Devia era ter gritado. Não, fui polido demais e sempre, encastelado. Abriu-se um vão, caí, agora estas janelas batendo-se com paisagens irreais. As mesas dão para um espaço comum, penha branca bem no meio do meu fino delicado tão suave

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

i wanna be your dog

Errada e cristalina. Se houvesse um modo de que o tempo não passasse para nunca, era esse. Tinha pegado a cabeça da amiga e estourado o dente da frente - de leite- na borda da piscina. Diz agora desgraçada. Vinham lá de dentro uns adultos, não tentei mentir, os copos cheios de gelo. A outra chorava e eu também. Mas juro, o sangue doía mais em mim, ela tinha a anestesia da carne roxa. E, de todos, eram eles os mais desesperados, um nervoso ria, e me perguntavam como-como? Não menti: dentro da água tentávamos adivinhar uma a outra as palavras nos berros e os fios do cabelo cresciam algas e aos risos me sufoquei e de repente, nem sei, era isso: sangue sobre o azul. Antes disso nem eu nem ela contamos nada ninguém nunca soube.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Malandragem III

Saí da casa dela umas dez e pouco, fui andando pro meu apartamento. Tava fresco, à noite, eu usava uma sandália de couro trançado meio bege, prendia no tornozelo. Era uma época que eu pintava o cabelo de loiro escuro, gostava de sair na rua toda assim, pensando “sou uma alemã”. Tirei a chave da mochila já no elevador, quando cheguei no meu andar vi a luz acesa por baixo da porta. Não tinha música. Ela estava sentada na minha cama, lendo, muito séria mesmo. "Quem abriu a porta?" - perguntei. "A enfermeira". Depois disse baixinho: "Sabe o que dizem das lésbicas por aí? Que ficam abraçadas a noite inteira, conversando sobre suas mães". "Você quer falar sobre a minha mãe?"; "Ouvi dizer que ela é uma gostosa".

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Sem história

Ali, na confluência desta rua com a avenida principal, começa a ponta da quadra, onde temos, nesta sequência: um mercadinho de bairro, uma casa do norte, uma oficina de molas, uma casa de fliperama, um açougue e, por fim, na outra esquina, confluência com a rua paralela a esta, uma padaria. Diante da casa do norte, na mesma calçada, há uma banca de jornal, logo junto à banca de jornal, antes, como quem vai desta esquina a outra, há um orelhão. Logo após a banca, há um bueiro. Guias rebaixadas, cimentado remendado. Divisas recuadas (assim se providencia vagas para os carros). Mais abaixo, há um córrego imundo. Ninguém sabe, mas ali foi uma linda torrente e uma bela encosta. Nada de comércio, nada de esgoto.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

A torre

O nascimento aquela euforia de olhos, todos vidrados numa promessa de grandeza que seis anos depois o menino acariciaria na cama, um modo mais confortável de sono. Os treze são uma idade terrível. Trancado no banheiro, era olhar pra baixo e chorar, com medo talvez, mas de quê? Passaria os dias ali, arrancando alegria à força. Mas o susto passaria, a firmeza da carne moldando o espírito, cada vez mais certeza no uso. Aos cinquenta, por vezes, nem se lembrava de tê-lo em si. E não lhe faria tanta companhia aos setenta, embora permanecesse ali sempre um prazer à espreita, de veneno diluido e bote incerto. Ainda que agora pendesse flácido entre as pernas, feito o avesso de um monumento.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

o medo da gente

a epifania, sinto atrás, e isso pouco doce. você chega na porta da área vai direto tomar banho escovar o dente eu como alguma coisa ponho um tênis pra sair você espera no carro. sentamos no bar de cadeira plástico vermelho e pedimos cerveja. o sol no rosto caindo no outro horizonte. as nuvens olhando, dando tchau. pensar na mudança, inútil, é sem saída, dia e noite cercados. eu lembro de quando você pegou o velotrol e jogou no lixo, por que você fez isso eu pergunto, por que jogar o velotrol fora. você com um brilho no olho responde fraco, lurex antigo você diz tive que quebrar uma regra. e a sensação de que seria assassinado, estrangulado por alguém de longe que viria enquanto tomava sol na cobertura.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Diário de Estância, XII


Antes de mais nada, comunhão. As habitações dão para um espaço comum. Esta é pequena. Não tem balanço, não tem coreto. Só bancos. Penso que eu seria mais feliz com um coreto por perto. Sempre que pisasse lá me ocorreriam charamelas, basta isso para que os lábios repuxem, subam, diga X. As coisas como sendo, restam as pessoas que pisam, coisa que não cessa. Trânsito de Tadzios pelo início da tarde, ninguém se abate da vertigem comunal. Porque vertigem, é. Antes de mais nada, vertigem. Antes de mais nada, trânsito. Comum, comunhão, comunal, um dos capítulos deste estudo de Ivo Kranzfelder sobre o Hopper leva o título de “Tirania da Intimidade”. Isso sempre me impressionou um bocado.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

é um equívoco muito fino

E o fogo quando chega a esse estádio, a torcida pulando, inevitável, a maioria das vezes é que você então, goza. Fica constrangido. Como uma flor apoderada entre os meus dedos, a murchar. E aquela sensação da minha força ter de vir menos se não esmaga, e querer gritar é tudo e caralho não me diz o que fazer. Não vejo tesão em violência. Tô sempre lutando por algo. Não essa merda de querer me colocar dentro de um abracinho de freio-puxado. Olha, eu prefiro que a gente se entenda às drogas fortes, aos dromedários. Gostava de ir até o fundo do jardim com o Duda e agitar os galhos perto dos hibisco os morcegos vinham as varetas no céu. Gosto de poder. Agora estou sozinha e terrivelmente incomunicável. Outros até falam comigo. Eu é que não.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Malandragem II

Eu não conhecia ninguém na cidade que servisse de fiador, ou seja, ninguém com salário e proprietário. As pessoas viram proprietárias depois dos 30 ou então NASCERAM proprietárias, eu não conhecia ninguém assim. Na minha família, claro, pais e tios que trabalharam a vida toda economizando e pagando financiamentos, mas eles estavam a 400 km de distância e ainda bem. Eu estava fugindo desesperadamente desse destino implacável de economizar e trabalhar e economizar e trabalhar e por isso dormia entre quatro camas na república das enfermeiras mas estava difícil ser estudante e independente e pobre e lésbica porque para praticar este último adjetivo eu PRECISAVA de um lugar pra transar.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Melancias

O inferno deve ser assim; só que no lugar da água, o fogo. A água vazou do rio e entrou quase dois quilômetros várzea adentro, ou seja daqui, do Parque Dom Pedro até a Porteira do Brás; não tenho galochas; as pessoas enfiam os seus fuscas na enxurrada e os ônibus não se atrevem. A água vai baixar, não será eternamente as tintas do Benedito Calixto e sua várzea inundada que prevalecerão. Ora, terá de baixar. Eu, aglomerado aqui com esse monte de gente na esquina da General Carneiro e da 25 de março só vejo a água barrenta trazer restos de sonhos e cacos de vidas, desde Santo André. Queria mesmo estar mais para frente, junto ao Mercado. As melancias a boiar devem ser mais poéticas.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Bom dia, Fevereiro

Daqui pra frente é um mês inteiro, menos pros velhinhos dum asilo russo que pegou fogo, a Rússia naquele gelo e a velharada morrendo queimada. Em São Paulo, um motorista perdeu o controle da caminhonete e caiu no rio Tietê: também um péssimo jeito de começar: fevereiro. Berlusconi disse que a beleza das italianas é que dificulta a prevenção de estupros. Anna Stella Schic, pianista brasileira renomada, morreu nesta madrugada em sua casa no sudeste da França. Mas muito antes ela já havia parado de tocar piano, quando seu marido, um compositor francês, morreu. Em 1996. Este mês tem carnaval. Minhas avós falam que é coisa do demônio. Uma é católica, a outra evangélica. Mas ambas gostam de ver pela televisão. Porque, admitamos, é muito bonito.

sábado, 31 de janeiro de 2009

a-a

peguei no sapato e quis movimentá-lo, assistindo à gueixa desmanchando em mim. a minha reputação caiu depois que me viram. derretida pequena fui na fila do banheiro pra começo de conversa. peguei e virei pra moça do lado é aqui? ela sim e começou a querer falar. dei uma piscadinha, acabei calando. continuamos paradas de fila. acompanhei-a à cabine, agarrada, e juntas percebemos uma pintura ali. afresco? eram figuras humanas em tamanho real, esperando à maneira egípcia. usamos a privada com ordem e calçando os sapatos tive prazer -- não queria sair, era bonito demais. se estar em fila suspende, ser é simples e facilmente corrompível. o social não interrompe nada, nada

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Diário de Estância, XI


Dor que dói no corpo, nem bolsa de água quente resolve, chá de boldo e relaxante muscular. Não vou à praça, o máximo que consigo é a padaria aqui do lado, comprar cigarros, voltar, só isto me tomou mais de um quarto de hora, arrastando chinelas cor de avô pela calçada, longo tempo contornando poças. Longo tempo não pudemos levantar, quando me estirei no chão do quarto o corpo veio junto, somos um pouco barrocos nesse sentido. This mortal coil. Mas não digo dos dualismos fáceis, nem do quixotismo em ter matéria e ser palpável. Não digo nada, ele pode me escutar. Criatura tramadora, cheia de vinganças e rancorezinhos – a única coisa a fazer é deixá-lo quieto. Uma hora cansa de espernear. A lide segue.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

passado, caminho

Nenhum de nós volta atrás. Este sofá é largo o bastante para mim, a memória e o prospecto. Cabe até alguns livros, bivalves grudados escapando por fora uma água salgada do galpão da nau. Um dia ainda vou escrever na tua língua, rupestre - - hieroglifo - - teu luto matutino, arrancá-la para mim - rosa - como uma de sogra que se sopra. Então um traço no teu cabelo. Essa águia que me sonha. E eu sempre queimando o arroz, dando ruído no lugar de palavras, o peito cada vez mais cabendo essa dor que ninguém em mim escala. Sei que contigo sou bem um Herberto, montanha que incendeia, nada daquele oceano que eu canto - tanto - e me deixa sozinha nessa sala.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Malandragem I

Nós precisávamos de um lugar. Eu estava há três meses na república das enfermeiras e já tinha percebido que não ia rolar. Elas às vezes traziam namorado para dormir na sala. Mas namorados normais, enfim, eu não ia criar toda uma discussão filosófica pra acabar sendo expulsa. A mãe dela ainda deixava eu dormir lá mas até onde poderíamos ir? Não pelo barulho, claro, tínhamos técnica nisso, mas a frequência exagerada ia dar na cara. Rafa queria que eu alugasse um apartamento só pra mim. “Está louca?Com que dinheiro?”. “Eu te ajudo”, ela dizia. Mas eu não ia nunca assinar um contrato e ficar amarrada na dependência dela. Tínhamos que encontrar algo que eu pudesse pagar sozinha.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Válvula

Eloi era metódico. Desmontou, sobre a mesa da cozinha, peça a peça o nosso rádio. Ainda não tínhamos televisão, que veio quase um ano depois. Eu era pequena e olhava o meu primo desmontando o rádio, lavando as peças, uma a uma, numerando-as e marcando complicadas linhas numa folha de papel. A pequena tigela velha logo ficou com uma fina camada de lama. O rádio havia sido pego pelas águas da enchente e nelas havia navegado à deriva. Achamo-lo tombado num canto quando baixou a água. Eloi desmontou-o e limpou-o, mas tanto eu quanto meu pai pegamos nojo do rádio. Não porque a programação tenha piorado, mas porque toda vez que o ligávamos, independente da limpeza, sempre vinha um cheiro de barro seco das válvulas quentes.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Rio dos mortos

Ele guardava os dias em si. Nunca ninguém morreu perto dele: fabricava o luto no peito apertado de possíveis mortes, a mãe, o pai, qualquer um dos bons amigos que tinha, um animal. Observando os outros mais novos, percebia uma coisa que não queria, que não queria ter, que é a leviandade de quem não perde. Ensaiava, então. Hoje um domingo cinza. Eu olhei da janela do meu apartamento e vi: névoa branca vem do leste, agora esfria, agora começa a chover. Here we are stuck by this river/ You and me underneath a sky/ That's ever falling down down down. Nenhum sabor de companhia naquelas incursões de retardo ele queria. E ainda assim os mortos fabricados - vivos, na verdade - juntavam ao dele os seus corpos de ar. O luto é por nós.

sábado, 24 de janeiro de 2009

a extração do ouro

— o social, amigo, é a consciência intrigante do conjunto quando é preciso partir. desligados da união, que bem-durou a todos o que dura, cadentes viramos as costas/ fora da órbita/ o caminho a fazer impede de apreciar a paisagem estendida sobre o cerrado — belíssima vista a descer chorando, os meus sociáveis acenando tímidos no retrovisor que não limpa. o suor exposto ao vento do acostamento refresca, o resto é música, chiado. a entrega com clareza leva bem pro canto, assim, lugar pontual, recortado, quina eu diria. a poeira brilhosa se agita com a chegada — festeja através da luz da cortina aberta, dançando com os cobertores que quebram enfeites, a poeira lá lá lá descendente acolherá o ser, tenra nata —

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Negativo, Negativo

Abriu os olhos e não conseguiu tocar no despertador que berrava há pelos 2 horas. Saiu da cama e o chinelo fugiu dos seus pés. Estava sem roupa nehuma. Quando tentou tomar banho, estranhou ao perceber que nenhuma gota de água caia no seu corpo. Ele tinha se transformado em um imã e tudo ao redor estava no mesmo pólo. Logo se acostumou com a situação. Ainda era complicado sair de casa pelado, mas com um tempo ninguém mais reparava. Gostava de saber que nenhum mosquito o picaria nunca mais. Era quase um ser pintado de urânio, só faltava brilhar. Não tinha muito o que reclamar com os benefícios. Difícil era não poder abraçar mais ninguém. Por um momento pensou que se tivesse acordado duas horas mais cedo, sua vida estivesse diferente. Mais atrair tudo em volta também não seria legal.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Diário de Estância, X


Anna chega exausta, digo-lhe que o jantar está pronto. Strogonoff de pai e mãe. É crença de certos canibais que a digestão não constitui processo meramente físico: metabolizam-se igualmente os predicados morais, por assim dizer, do ente refeiçoado. Eu, a matrona do lar – esta cozinha está impraticável – escrutando, cheio de dedos mais ou menos fictícios, as ofertas no Supermercado. Saio de casa na chuva para comprar incenso, a praça de permeio, tomo meu café. Tornando já. Nossa sala cheira à baunilha, as pequenas odisséias do dia adquirem consistência de milk-shake. Pois bem, esta é minha prova de amor para você, ele observa, palitando os dentes. Como foi a entrevista de emprego segunda-feira?

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

beira mar

A guarita tem as paredes verdes. Separa. Um relógio de ponto e outro perto da televisão, no outro fuso. Derretendo, com os pés cruzados sobre a mesa, o guarda. Ontem é que aconteceu de tocar o telefone. Era um homem, pedindo encarecidamente para que ele, - - - não entendia a língua do vizinho. Veio uma mulher com um bebê de colo e gorrinho, carimbou os papéis, atravessaram a fronteira. Sozinho. E agora quando liga a TV no Quarta-feira late show, a imagem se abre em duas silhuetas num palco, meio abraçadas. O guarda aumenta o volume e perhaps love is like the ocean taran ran ran atravessa a cancela até o outro lado. Dureza, o coração apreendido pelos anos, fecha os olhos e, sinceramente, chora.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Meio negra

Nasceu em Ponta Grossa, a mãe em Curitiba, a avó na Bahia; apaixonada por um polaco (a avó) veio para o Paraná, moraram juntos, engravidou, ele sumiu. Meio negra (o que é isso?), trabalhou como assistente de enfermagem até se aposentar; insistiu que a filha estudasse; ela (a filha, a mãe) formou-se em engenharia mecânica porque queria um curso difícil – um curso de verdade, um curso masculino. Mais clara que a mãe, moreninha, os cabelos encaracolados já não eram crespos. Cacheados. Casou também com um clarinho, italiano, seu colega de turma. A filha ninguém saberia julgar exatamente – espanhola? portuguesa? iraniana? Adolescente nos anos 90, não queria namorar um branco. Por que todas fizeram isso?

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Várzea, 1996

Rápido, levanta tudo do chão. O que der! A gente fica ali, no alto da escada que ali a água não chega. Também não desce e põe os pés na água, porque é água de barro e merda, os ratos mijam tudo nela e tem aquela doença igual a que tem nas latas de cerveja sem lavar. Ó lá, está entrando já um esguicho por debaixo da porta, parece até o chafariz do Ibirapuera, porque tem pressão. O sofá? Foda-se o sofá, querida! 'Tá seca? A gente não vai mais 'tá seco quando tiver que puxar a lama com o rodo. A parede que você pintou de azul e florzinha vai ficar salpicada de barro, esse barro porco de esgoto e a casa vai ficar fedendo água suja por um bom tempo. Quieta! Ouvi um barulho. Acho que a geladeira emborcou na água.

domingo, 18 de janeiro de 2009

A grande mídia é o nosso esporte

Gaza é um assunto muito fácil, vamos falar de outra coisa. Você acha? Claro, na festa uma alegria, você me vira e diz "o horror, o horror", ah, deixa de ser cínico, que me importa o exército, Israel, o neonazismo, a lua em libra corta o céu pra nossa diplomacia. Onde você está? Quer falar de horror? Não existe horror, muchacho, nem amor de menos, amor demais, tanta firmeza assim pra bicho da terra tão pequeno. Quando a gente fala em Gaza, Gaza o que que é? Sierra Leoa, Mianmar, Cabul, Bagdá, Carandiru. Toponímia do acidente. Quer falar de guerra, mas a gente canta Luís Gonzaga como quem não quer nada, só o bonito, e faz pose de secura. Quer ser seco? Quer ser pobre? Quer ser morte? A gente quer? Do que é que a gente vai falar?

sábado, 17 de janeiro de 2009

"anatoles", vitalic

chiquerê na mesa de manequim, pantalona vestido capcioso kk ó o queridíssimo jogando óleo no acrílico com durex ó oleo escorre e alguém esbarra e suja a roupa mas dá um jeito na pia. fulana na mesma tentando limpar uma cerveja no decote. jura/ perfuma/ juro. sicrana com rótulo de enfeite na saia sexual. na maior malemolência das substâncias me senti muito doido e observado. de repente vi: o social não é ser observado, o que é o social? observei muito. eu e M. cansamos e fomos pro apartamento fumar um/ dois/ três/ quatro/ cinco/ observações/ substância distância/ comecei numa onda "esfera da produção de si mesmo". é "eu" mesmo que sai? esta história é trago

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Balançado

O ônibus estava balançando mais que o habitual. Conhecia cada curva, desvio e buraco do trajeto. Poderia se guiar de olhos e ouvidos tapados sem jamais errar sua localização. Havia algo de estranho nesse dia. Desceu três paradas antes porque já não agüentava mais o desconforto. Começou a andar pela calçada e percebeu que o balanço continuava. Parou. Andou novamente, mais rápido, a vibração era ainda maior. Notou, apenas sua cabeça sentia aquela oscilação. O resto do corpo nem mexia. Olhou os pés e ao retornar o olhar para cima, caiu tal forte foi a tonteira. Sacudiu a cabeça e começou a desconfiar que seu cérebro tivesse se desgarrado do crânio. Pegou um táxi e ao entrar sentiu seu coração bater dentro da barriga.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Diário de Estância, IX


Não é preciso esforço para botar miçangas de suor pelas têmporas. Chorar são outros quinhentos, mas você alguma vez já riu tanto a ponto de alguma coisa rebentar na arca torácica? Há mecanismos mais sutis, certo, mentiras mais sentidas, como o verão. Uma doença lenta que se espraia por dentro, eu quero rir e chorar e ser impossível. Play, já não ouço o berro das cigarras. São criaturas muito em-tempo, as cigarras. E se os dias (a passagem dos dias) nos premessem assim, também estaríamos agarrados às árvores, berrando. De qualquer forma, é bom estar fora de casa. Os inocentes e os culpados, todos na mesma cestinha, todos levados adiante pela mesma Caloi azul-bebê. Nada é simples e tudo é bastante banal.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

a terra na palma dos olhos

Focou demais, perdeu. Porque se um poeta sobe até o alto da montanha o que faz um poeta? Escava um buraco. Grava um grito dentro da terra. Enterra seus livros o papel ácido pela terra vermelha, sem cerimonial o poeta chora seu pequeno incêndio. Estava cansado dos tampos de granito nas cozinhas, nas mãos das crianças - tão cedo e já negadas. Dos adultos tentando não se atropelar. E as luzes nos postes se acendendo ao fim do dia. Tentava se lembrar, "há maçãs que crescem em árvores, há o pasto". Agora no alto, o poeta se afunda. Não sabe se aproximar dos animais. "O ciúmes é uma galinha entre as paixões. É uma ave que não voa." Esse lirismo de mariposa, pra quem a lâmpada é todo mapa de uma cidade.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Nas cataratas

Treze reais para entrar no Parque Nacional mas o passeio de barco às cataratas custa centro e sessenta e nove. Três obsessões do país: Fanta Uva, Chaves e o Pica Pau nas cataratas. Eu era adolescente e o desenho passava sempre ao meio-dia; voltava do cursinho, enchia o prato com a comida fria no fogão e sentava em frente à TV no quarto dos meus irmãos. Pica Pau obsessivamente tentando descer as cataratas em seu barril. Um guarda gordo – leão marinho? – tentando impedir e sempre caindo em seu lugar. A multidão à margem levantava os braços: Hey! Cento e sessenta e nove reais por cada bilhete – trezentos e trinta e oito no total. Subimos no bonde elétrico e descemos em direção ao rio. Os coletes salva-vidas já estão molhados.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Do que se ouve por aí

Juventino levantou-se do seu mocó de papelões e plástico. Esta porcaria de cidade roubava-lhe a alegria e devolvia-lhe crostas de sujeira preta para os entrededos dos pés. Dobrou a casa e enfiou-a numa fresta do prédio em ruínas; saiu a viver o dia, a ganhar as esmolas, a tentar comer algo. Antes, tinha o seu dever cívico: palestrava ao vento na praça da Sé. Não ao vento, mas aos fantasmas que a ele foi-lhe concedida a percepção. Junto à segunda palmeira da praça, vociferava sobre os mais diversos assuntos. Hoje falava mal da ex-mulher, mulher que conseguiu nas terras de Piratininga e o largara por um malandro que "fazia melhor o serviço". E berrou: "Pra casar com mulher paulista, tem que ter cadeado na bunda!"

domingo, 11 de janeiro de 2009

Sensual sem ser vulgar

Ele roubava calcinhas, mas era pra vestir / Aos quarenta morando co'a mãe entrevada na cama, ele cozinhava só de calcinhas / Um ônibus fechou a moto e ele acordou no hospital, os médicos cortando suas roupas, que vergonha quando a renda vermelha apareceu / Não era pra você achar essas fotos! / Da primeira vez, foi a esposa que pediu. Logo ele começou a vestir as calcinhas por conta própria. Ela enfiava a mão dentro da calça dele e falava: "minha putinha" / Morria de medo de que descobrissem / O destaque da coleção era a da Tônia Carrero / Com dez anos, da gaveta da irmã. O pai chegou em casa mais cedo. Mandou ele pôr sutiã também / Embaixo daquele terno, andando na Faria Lima, você nunca sabe o que pode encontrar.

sábado, 10 de janeiro de 2009

queridíssimo

qual é o e-mail do queridíssimo? desisti da estreia em tempo, um espetáculo chato. como saber? quanto a mim, o real amarrou a bibliografia toda, difícil entender: pão-duragem. sem referência. peguei a foto dele na revista e fiz um bigodinho lilás. quarenta anos depois Linus foi fazer colagem, adorou a falta de cor. DESBOTADURA SOU EU QUE TIVE IDEIAS. você pesquisa, por favor? EU AINDA QUERO BROTANDO. dor. dor anestesiada de boate, luzinha piscando, três letrinhas rodando, moço. e bate forte coração. anestesia frita. a mil, um perfume, uma flor de lata, um sentido vertido. olha se tem o e-mail aí na internet. o que faz o queridíssimo?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Incêndio na Pampulha

Comecei por quebrar sua caixa de correios. Incendiei sua casa, seu carro e principalmente o seu gato. Enfiei cápsulas de gasolina nele antes e foi lindo quando aquela bola frenética de fogo explodiu. Nunca vou esquecer do seu rosto coberto de pêlos e vísceras daquele siamês infernal. Faria o mesmo com você. Comecei a substituir seu sangue por álcool em gel. Quando percebi que cada uma das suas veias estava preenchida comecei a tortura. Reli todas as cartas que tinha me escrito, exibi todos os nossos vídeos românticos que o You Tube bloqueou e passei um longo slide das nossas melhores fotos. Você entrou em autocombustão antes do fim. Só sobrou seu coração que sempre foi um gelo e nunca teve nenhuma serventia.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Diário de Estância, VIII


Brisa de fim de tarde, quando não se escreve para ninguém em particular. Uma expressão de quê, precisamente? Não deveria rascar, mas também não tomo o partido das embarcações desgarradas. Não consigo. O desgarro não me vem como opção (política). Dou à praça é com ofício, com encargo. Atraco, tomo meu expresso no copo de plástico. Quero dizer alguma coisa. Não quadra. Quero um diagnóstico, um censo das baixas do dia (gozo carola do denunciante). Mas é janeiro, e as vozes entram em recesso, com minha língua estatelada no fundo da boca, manta de muco, pupa ainda desalmada. Linguagem, espírito. Veraneio absoluto. Sopor. Uma moça de preto chega ao extremo vicioso de chupar um picolé na minha frente.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

outro retrato em branco e preto

O grande poeta vinha pelo Leblon pra livraria. Disfarçado - cara limpa, sem máscara. Preocupado, atenção, em ver se lhe davam cinco ou seis o crédito, se hm-hm gemiam passando pela estante . Lá fazia uns cinco dias que vinha todo pelo almoço e ficava vagando, e nada, nada acontecia, duas horas, quatro pares de brincos dourados. Então foi que ouviu as peruas comentaram um livro. Uma árvore no fim duma porteira o céu escurecendo. Minha vida de fazendeiro. Vacas!? Lembrava bem do primo, caçava codornas, não sabia a diferença entre coachar e calar. Pensou o grande: "quem quer a lei nesse país sem métrica?". E depois, sobre a mesa, deliberando contra o hiato: Fazendeiro do ar. Poeta? Vai que dói.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

CPF

Quantos anos eu tinha? Ainda morava com minha mãe. Catorze? Na oitava série ia ao banco toda semana, depositar o dinheiro da viagem de formatura. Nossa turma tinha dezoito alunos, a cada dia alguém trazia um bolo. A forma retangular, eu mesma cortava, três facadas numa direção, quatro na outra, vinte pedaços. Só a oitava série podia fazer isso: concorrência na fila da cantina. Os mais novos eram convencidos a comprar por nosso charme debochado. Organizar, produzir, vender, poupar. O dono da cantina concordava, fornecedor envolvido no processo educacional. Licença para comerciar por motivos didáticos. A conta estava em nome de quem? Não era a minha agência. Com meu CPF, fui na Caixa Econômica do outro lado da rua.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O momento exato

Bartoli esforçava-se para ouvir com precisão o que a boca desdentada de Tuone pronunciava. O pior não era ter de separar mentalmente cada fonema aspergido pelas gengivas solitárias, mas sim aguentar o bafo pútrido do velho barbeiro. Tuone falava, Bartoli anotava. Tuone era como o último exemplar de uma espécie extinta, ou melhor, era como um animal que guardava um órgão residual que não tinha mais função, mas dizia muito sobre o estado atual das coisas. Ele era o último falante de dálmata, mas não nativo; aprendera-o dos pais. Bartoli precisou das informações para o seu grandioso Das Dalmatische (ainda em âmbito áustro-húngaro). O dálmata morreu anos depois. Língua caquética, pisou numa mina terrestre em 10 de junho de 1898.

domingo, 4 de janeiro de 2009

matura

Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.
Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.
E pensas maravilha quando pensas anca
Quando pensas virilha pensas gozo.
Mas tudo mais falece quando pensas tardança
E te despedes.
E quando pensas breve
Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano
Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.
E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas
Luta, ascese, e as mós do tempo vão triturando
Tua esmaltada garganta... Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...
Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade
A esperança.

(Hilda Hilst, Cantares do Sem-Nome e de Partidas)


Com quinze anos eu ouvi da professora de literatura que a poesia de Castro Alves era condoreira, o condor sendo bicho de alto vôo, alto mais que tudo. Naquele ano eu dei meu primeiro beijo, abaixo da cintura o zíper aberto no pano sem cor de um carro à noite. Aos dezessete o amor se tornou palpável como busca, e eu mordia lábios inferiores tentando engolir qualquer coisa de sólido sem conseguir. Eu era tábua rasa tentando partir. / Faz quase três anos eu te conheci e encontrei o amor, così bello e perduto, uma falta que a gente faz, sem distração. Chegar no mapa ao lugar e não vamos residir. É escrever num corpo estrangeiro, embalar hordas de bárbaros, capricórnio / de asas douradas / o pé no coração; com penas e carne, mais alto que tudo.

sábado, 3 de janeiro de 2009

retrato de crasse: Márcio

Juli no patinete. minha sobrinha vai pra frente e pra trás. desdenhando o trajeto da quadra. Juli esbarra na mureta e cai rindo. do alto da minha janela, meu riso pensa precoce. chega o porteiro muito barulho. ela recalcitra, toca tambor com a terra do jardim. super trilili termino a dose de uísque e sem energia desço quatorze andares. quando chego Juli joga giz de cera na cara do porteiro. do alto do pensamento fico sem saber se cato o giz ou carrego a menina. como respeitar a soltura infantil? talvez eu nada de filhos. olho pra Severino e começo a dançar imitando uma música da Xuxa, descontraindo com humor. de cara vermelha, ele escarra no chão. diante da brutalidade inadmissível, me agarro revoltado ao patinete desculpa.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Algas

Acordou com uma forte onda grande molhando o seu pé. Quando tentou se levantar viu que seu corpo estava coberto de algas verdes. Mais forte era o movimento maior era o peso em cima dele. Relaxou e pensou em esperar que o sol forte secasse as algas, mas foi o contrário que aconteceu. À medida que as horas avançavam, os talos das algas entram por dentro da pele. Uma mistura de clorofila e sangue passou a circular por aqueles dois seres que passaram a ser um. Todos os seus pêlos floresceram e plânctons davam uma nova coloração aos seus olhos. Sua língua ficou multicolorida como de um raro coral pulsante. Ele já pensava como uma alga quando finalmente se libertou. Sua primeira ação foi se lançar para o fundo do oceano revolto.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Diário de Estância, VII



A praça pela primeira manhã do ano. Perdi os chinelos na praia. As passadas são duras, flerto com a idéia de parar um pouco. Não paro. Tenho medo de desmaiar e quero escrever uma carta de amor. Ela se chamaria “Amor 2009” e não se pegaria a ninguém, não excluiria ninguém, seria uma carta de amor toda-inclusiva. J. perdeu o trem e chegou um quarto de hora atrasado para a retrospectiva. Olhos Verdes foi fazer a guerra. O Maratonista tentou achar alguma ironia nas despedidas, e não havia o que ironizar. Tanto melhor que F. não tenha telefonado, isto prova por A + B que nada, rigorosamente nada mudou. Seria uma carta toda-inclusiva, de uma vez que se começa, a coisa perde qualquer encalço de fim. As solas desfolhadas.
 

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