sábado, 31 de janeiro de 2009

a-a

peguei no sapato e quis movimentá-lo, assistindo à gueixa desmanchando em mim. a minha reputação caiu depois que me viram. derretida pequena fui na fila do banheiro pra começo de conversa. peguei e virei pra moça do lado é aqui? ela sim e começou a querer falar. dei uma piscadinha, acabei calando. continuamos paradas de fila. acompanhei-a à cabine, agarrada, e juntas percebemos uma pintura ali. afresco? eram figuras humanas em tamanho real, esperando à maneira egípcia. usamos a privada com ordem e calçando os sapatos tive prazer -- não queria sair, era bonito demais. se estar em fila suspende, ser é simples e facilmente corrompível. o social não interrompe nada, nada

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Diário de Estância, XI


Dor que dói no corpo, nem bolsa de água quente resolve, chá de boldo e relaxante muscular. Não vou à praça, o máximo que consigo é a padaria aqui do lado, comprar cigarros, voltar, só isto me tomou mais de um quarto de hora, arrastando chinelas cor de avô pela calçada, longo tempo contornando poças. Longo tempo não pudemos levantar, quando me estirei no chão do quarto o corpo veio junto, somos um pouco barrocos nesse sentido. This mortal coil. Mas não digo dos dualismos fáceis, nem do quixotismo em ter matéria e ser palpável. Não digo nada, ele pode me escutar. Criatura tramadora, cheia de vinganças e rancorezinhos – a única coisa a fazer é deixá-lo quieto. Uma hora cansa de espernear. A lide segue.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

passado, caminho

Nenhum de nós volta atrás. Este sofá é largo o bastante para mim, a memória e o prospecto. Cabe até alguns livros, bivalves grudados escapando por fora uma água salgada do galpão da nau. Um dia ainda vou escrever na tua língua, rupestre - - hieroglifo - - teu luto matutino, arrancá-la para mim - rosa - como uma de sogra que se sopra. Então um traço no teu cabelo. Essa águia que me sonha. E eu sempre queimando o arroz, dando ruído no lugar de palavras, o peito cada vez mais cabendo essa dor que ninguém em mim escala. Sei que contigo sou bem um Herberto, montanha que incendeia, nada daquele oceano que eu canto - tanto - e me deixa sozinha nessa sala.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Malandragem I

Nós precisávamos de um lugar. Eu estava há três meses na república das enfermeiras e já tinha percebido que não ia rolar. Elas às vezes traziam namorado para dormir na sala. Mas namorados normais, enfim, eu não ia criar toda uma discussão filosófica pra acabar sendo expulsa. A mãe dela ainda deixava eu dormir lá mas até onde poderíamos ir? Não pelo barulho, claro, tínhamos técnica nisso, mas a frequência exagerada ia dar na cara. Rafa queria que eu alugasse um apartamento só pra mim. “Está louca?Com que dinheiro?”. “Eu te ajudo”, ela dizia. Mas eu não ia nunca assinar um contrato e ficar amarrada na dependência dela. Tínhamos que encontrar algo que eu pudesse pagar sozinha.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Válvula

Eloi era metódico. Desmontou, sobre a mesa da cozinha, peça a peça o nosso rádio. Ainda não tínhamos televisão, que veio quase um ano depois. Eu era pequena e olhava o meu primo desmontando o rádio, lavando as peças, uma a uma, numerando-as e marcando complicadas linhas numa folha de papel. A pequena tigela velha logo ficou com uma fina camada de lama. O rádio havia sido pego pelas águas da enchente e nelas havia navegado à deriva. Achamo-lo tombado num canto quando baixou a água. Eloi desmontou-o e limpou-o, mas tanto eu quanto meu pai pegamos nojo do rádio. Não porque a programação tenha piorado, mas porque toda vez que o ligávamos, independente da limpeza, sempre vinha um cheiro de barro seco das válvulas quentes.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Rio dos mortos

Ele guardava os dias em si. Nunca ninguém morreu perto dele: fabricava o luto no peito apertado de possíveis mortes, a mãe, o pai, qualquer um dos bons amigos que tinha, um animal. Observando os outros mais novos, percebia uma coisa que não queria, que não queria ter, que é a leviandade de quem não perde. Ensaiava, então. Hoje um domingo cinza. Eu olhei da janela do meu apartamento e vi: névoa branca vem do leste, agora esfria, agora começa a chover. Here we are stuck by this river/ You and me underneath a sky/ That's ever falling down down down. Nenhum sabor de companhia naquelas incursões de retardo ele queria. E ainda assim os mortos fabricados - vivos, na verdade - juntavam ao dele os seus corpos de ar. O luto é por nós.

sábado, 24 de janeiro de 2009

a extração do ouro

— o social, amigo, é a consciência intrigante do conjunto quando é preciso partir. desligados da união, que bem-durou a todos o que dura, cadentes viramos as costas/ fora da órbita/ o caminho a fazer impede de apreciar a paisagem estendida sobre o cerrado — belíssima vista a descer chorando, os meus sociáveis acenando tímidos no retrovisor que não limpa. o suor exposto ao vento do acostamento refresca, o resto é música, chiado. a entrega com clareza leva bem pro canto, assim, lugar pontual, recortado, quina eu diria. a poeira brilhosa se agita com a chegada — festeja através da luz da cortina aberta, dançando com os cobertores que quebram enfeites, a poeira lá lá lá descendente acolherá o ser, tenra nata —

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Negativo, Negativo

Abriu os olhos e não conseguiu tocar no despertador que berrava há pelos 2 horas. Saiu da cama e o chinelo fugiu dos seus pés. Estava sem roupa nehuma. Quando tentou tomar banho, estranhou ao perceber que nenhuma gota de água caia no seu corpo. Ele tinha se transformado em um imã e tudo ao redor estava no mesmo pólo. Logo se acostumou com a situação. Ainda era complicado sair de casa pelado, mas com um tempo ninguém mais reparava. Gostava de saber que nenhum mosquito o picaria nunca mais. Era quase um ser pintado de urânio, só faltava brilhar. Não tinha muito o que reclamar com os benefícios. Difícil era não poder abraçar mais ninguém. Por um momento pensou que se tivesse acordado duas horas mais cedo, sua vida estivesse diferente. Mais atrair tudo em volta também não seria legal.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Diário de Estância, X


Anna chega exausta, digo-lhe que o jantar está pronto. Strogonoff de pai e mãe. É crença de certos canibais que a digestão não constitui processo meramente físico: metabolizam-se igualmente os predicados morais, por assim dizer, do ente refeiçoado. Eu, a matrona do lar – esta cozinha está impraticável – escrutando, cheio de dedos mais ou menos fictícios, as ofertas no Supermercado. Saio de casa na chuva para comprar incenso, a praça de permeio, tomo meu café. Tornando já. Nossa sala cheira à baunilha, as pequenas odisséias do dia adquirem consistência de milk-shake. Pois bem, esta é minha prova de amor para você, ele observa, palitando os dentes. Como foi a entrevista de emprego segunda-feira?

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

beira mar

A guarita tem as paredes verdes. Separa. Um relógio de ponto e outro perto da televisão, no outro fuso. Derretendo, com os pés cruzados sobre a mesa, o guarda. Ontem é que aconteceu de tocar o telefone. Era um homem, pedindo encarecidamente para que ele, - - - não entendia a língua do vizinho. Veio uma mulher com um bebê de colo e gorrinho, carimbou os papéis, atravessaram a fronteira. Sozinho. E agora quando liga a TV no Quarta-feira late show, a imagem se abre em duas silhuetas num palco, meio abraçadas. O guarda aumenta o volume e perhaps love is like the ocean taran ran ran atravessa a cancela até o outro lado. Dureza, o coração apreendido pelos anos, fecha os olhos e, sinceramente, chora.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Meio negra

Nasceu em Ponta Grossa, a mãe em Curitiba, a avó na Bahia; apaixonada por um polaco (a avó) veio para o Paraná, moraram juntos, engravidou, ele sumiu. Meio negra (o que é isso?), trabalhou como assistente de enfermagem até se aposentar; insistiu que a filha estudasse; ela (a filha, a mãe) formou-se em engenharia mecânica porque queria um curso difícil – um curso de verdade, um curso masculino. Mais clara que a mãe, moreninha, os cabelos encaracolados já não eram crespos. Cacheados. Casou também com um clarinho, italiano, seu colega de turma. A filha ninguém saberia julgar exatamente – espanhola? portuguesa? iraniana? Adolescente nos anos 90, não queria namorar um branco. Por que todas fizeram isso?

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Várzea, 1996

Rápido, levanta tudo do chão. O que der! A gente fica ali, no alto da escada que ali a água não chega. Também não desce e põe os pés na água, porque é água de barro e merda, os ratos mijam tudo nela e tem aquela doença igual a que tem nas latas de cerveja sem lavar. Ó lá, está entrando já um esguicho por debaixo da porta, parece até o chafariz do Ibirapuera, porque tem pressão. O sofá? Foda-se o sofá, querida! 'Tá seca? A gente não vai mais 'tá seco quando tiver que puxar a lama com o rodo. A parede que você pintou de azul e florzinha vai ficar salpicada de barro, esse barro porco de esgoto e a casa vai ficar fedendo água suja por um bom tempo. Quieta! Ouvi um barulho. Acho que a geladeira emborcou na água.

domingo, 18 de janeiro de 2009

A grande mídia é o nosso esporte

Gaza é um assunto muito fácil, vamos falar de outra coisa. Você acha? Claro, na festa uma alegria, você me vira e diz "o horror, o horror", ah, deixa de ser cínico, que me importa o exército, Israel, o neonazismo, a lua em libra corta o céu pra nossa diplomacia. Onde você está? Quer falar de horror? Não existe horror, muchacho, nem amor de menos, amor demais, tanta firmeza assim pra bicho da terra tão pequeno. Quando a gente fala em Gaza, Gaza o que que é? Sierra Leoa, Mianmar, Cabul, Bagdá, Carandiru. Toponímia do acidente. Quer falar de guerra, mas a gente canta Luís Gonzaga como quem não quer nada, só o bonito, e faz pose de secura. Quer ser seco? Quer ser pobre? Quer ser morte? A gente quer? Do que é que a gente vai falar?

sábado, 17 de janeiro de 2009

"anatoles", vitalic

chiquerê na mesa de manequim, pantalona vestido capcioso kk ó o queridíssimo jogando óleo no acrílico com durex ó oleo escorre e alguém esbarra e suja a roupa mas dá um jeito na pia. fulana na mesma tentando limpar uma cerveja no decote. jura/ perfuma/ juro. sicrana com rótulo de enfeite na saia sexual. na maior malemolência das substâncias me senti muito doido e observado. de repente vi: o social não é ser observado, o que é o social? observei muito. eu e M. cansamos e fomos pro apartamento fumar um/ dois/ três/ quatro/ cinco/ observações/ substância distância/ comecei numa onda "esfera da produção de si mesmo". é "eu" mesmo que sai? esta história é trago

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Balançado

O ônibus estava balançando mais que o habitual. Conhecia cada curva, desvio e buraco do trajeto. Poderia se guiar de olhos e ouvidos tapados sem jamais errar sua localização. Havia algo de estranho nesse dia. Desceu três paradas antes porque já não agüentava mais o desconforto. Começou a andar pela calçada e percebeu que o balanço continuava. Parou. Andou novamente, mais rápido, a vibração era ainda maior. Notou, apenas sua cabeça sentia aquela oscilação. O resto do corpo nem mexia. Olhou os pés e ao retornar o olhar para cima, caiu tal forte foi a tonteira. Sacudiu a cabeça e começou a desconfiar que seu cérebro tivesse se desgarrado do crânio. Pegou um táxi e ao entrar sentiu seu coração bater dentro da barriga.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Diário de Estância, IX


Não é preciso esforço para botar miçangas de suor pelas têmporas. Chorar são outros quinhentos, mas você alguma vez já riu tanto a ponto de alguma coisa rebentar na arca torácica? Há mecanismos mais sutis, certo, mentiras mais sentidas, como o verão. Uma doença lenta que se espraia por dentro, eu quero rir e chorar e ser impossível. Play, já não ouço o berro das cigarras. São criaturas muito em-tempo, as cigarras. E se os dias (a passagem dos dias) nos premessem assim, também estaríamos agarrados às árvores, berrando. De qualquer forma, é bom estar fora de casa. Os inocentes e os culpados, todos na mesma cestinha, todos levados adiante pela mesma Caloi azul-bebê. Nada é simples e tudo é bastante banal.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

a terra na palma dos olhos

Focou demais, perdeu. Porque se um poeta sobe até o alto da montanha o que faz um poeta? Escava um buraco. Grava um grito dentro da terra. Enterra seus livros o papel ácido pela terra vermelha, sem cerimonial o poeta chora seu pequeno incêndio. Estava cansado dos tampos de granito nas cozinhas, nas mãos das crianças - tão cedo e já negadas. Dos adultos tentando não se atropelar. E as luzes nos postes se acendendo ao fim do dia. Tentava se lembrar, "há maçãs que crescem em árvores, há o pasto". Agora no alto, o poeta se afunda. Não sabe se aproximar dos animais. "O ciúmes é uma galinha entre as paixões. É uma ave que não voa." Esse lirismo de mariposa, pra quem a lâmpada é todo mapa de uma cidade.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Nas cataratas

Treze reais para entrar no Parque Nacional mas o passeio de barco às cataratas custa centro e sessenta e nove. Três obsessões do país: Fanta Uva, Chaves e o Pica Pau nas cataratas. Eu era adolescente e o desenho passava sempre ao meio-dia; voltava do cursinho, enchia o prato com a comida fria no fogão e sentava em frente à TV no quarto dos meus irmãos. Pica Pau obsessivamente tentando descer as cataratas em seu barril. Um guarda gordo – leão marinho? – tentando impedir e sempre caindo em seu lugar. A multidão à margem levantava os braços: Hey! Cento e sessenta e nove reais por cada bilhete – trezentos e trinta e oito no total. Subimos no bonde elétrico e descemos em direção ao rio. Os coletes salva-vidas já estão molhados.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Do que se ouve por aí

Juventino levantou-se do seu mocó de papelões e plástico. Esta porcaria de cidade roubava-lhe a alegria e devolvia-lhe crostas de sujeira preta para os entrededos dos pés. Dobrou a casa e enfiou-a numa fresta do prédio em ruínas; saiu a viver o dia, a ganhar as esmolas, a tentar comer algo. Antes, tinha o seu dever cívico: palestrava ao vento na praça da Sé. Não ao vento, mas aos fantasmas que a ele foi-lhe concedida a percepção. Junto à segunda palmeira da praça, vociferava sobre os mais diversos assuntos. Hoje falava mal da ex-mulher, mulher que conseguiu nas terras de Piratininga e o largara por um malandro que "fazia melhor o serviço". E berrou: "Pra casar com mulher paulista, tem que ter cadeado na bunda!"

domingo, 11 de janeiro de 2009

Sensual sem ser vulgar

Ele roubava calcinhas, mas era pra vestir / Aos quarenta morando co'a mãe entrevada na cama, ele cozinhava só de calcinhas / Um ônibus fechou a moto e ele acordou no hospital, os médicos cortando suas roupas, que vergonha quando a renda vermelha apareceu / Não era pra você achar essas fotos! / Da primeira vez, foi a esposa que pediu. Logo ele começou a vestir as calcinhas por conta própria. Ela enfiava a mão dentro da calça dele e falava: "minha putinha" / Morria de medo de que descobrissem / O destaque da coleção era a da Tônia Carrero / Com dez anos, da gaveta da irmã. O pai chegou em casa mais cedo. Mandou ele pôr sutiã também / Embaixo daquele terno, andando na Faria Lima, você nunca sabe o que pode encontrar.

sábado, 10 de janeiro de 2009

queridíssimo

qual é o e-mail do queridíssimo? desisti da estreia em tempo, um espetáculo chato. como saber? quanto a mim, o real amarrou a bibliografia toda, difícil entender: pão-duragem. sem referência. peguei a foto dele na revista e fiz um bigodinho lilás. quarenta anos depois Linus foi fazer colagem, adorou a falta de cor. DESBOTADURA SOU EU QUE TIVE IDEIAS. você pesquisa, por favor? EU AINDA QUERO BROTANDO. dor. dor anestesiada de boate, luzinha piscando, três letrinhas rodando, moço. e bate forte coração. anestesia frita. a mil, um perfume, uma flor de lata, um sentido vertido. olha se tem o e-mail aí na internet. o que faz o queridíssimo?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Incêndio na Pampulha

Comecei por quebrar sua caixa de correios. Incendiei sua casa, seu carro e principalmente o seu gato. Enfiei cápsulas de gasolina nele antes e foi lindo quando aquela bola frenética de fogo explodiu. Nunca vou esquecer do seu rosto coberto de pêlos e vísceras daquele siamês infernal. Faria o mesmo com você. Comecei a substituir seu sangue por álcool em gel. Quando percebi que cada uma das suas veias estava preenchida comecei a tortura. Reli todas as cartas que tinha me escrito, exibi todos os nossos vídeos românticos que o You Tube bloqueou e passei um longo slide das nossas melhores fotos. Você entrou em autocombustão antes do fim. Só sobrou seu coração que sempre foi um gelo e nunca teve nenhuma serventia.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Diário de Estância, VIII


Brisa de fim de tarde, quando não se escreve para ninguém em particular. Uma expressão de quê, precisamente? Não deveria rascar, mas também não tomo o partido das embarcações desgarradas. Não consigo. O desgarro não me vem como opção (política). Dou à praça é com ofício, com encargo. Atraco, tomo meu expresso no copo de plástico. Quero dizer alguma coisa. Não quadra. Quero um diagnóstico, um censo das baixas do dia (gozo carola do denunciante). Mas é janeiro, e as vozes entram em recesso, com minha língua estatelada no fundo da boca, manta de muco, pupa ainda desalmada. Linguagem, espírito. Veraneio absoluto. Sopor. Uma moça de preto chega ao extremo vicioso de chupar um picolé na minha frente.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

outro retrato em branco e preto

O grande poeta vinha pelo Leblon pra livraria. Disfarçado - cara limpa, sem máscara. Preocupado, atenção, em ver se lhe davam cinco ou seis o crédito, se hm-hm gemiam passando pela estante . Lá fazia uns cinco dias que vinha todo pelo almoço e ficava vagando, e nada, nada acontecia, duas horas, quatro pares de brincos dourados. Então foi que ouviu as peruas comentaram um livro. Uma árvore no fim duma porteira o céu escurecendo. Minha vida de fazendeiro. Vacas!? Lembrava bem do primo, caçava codornas, não sabia a diferença entre coachar e calar. Pensou o grande: "quem quer a lei nesse país sem métrica?". E depois, sobre a mesa, deliberando contra o hiato: Fazendeiro do ar. Poeta? Vai que dói.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

CPF

Quantos anos eu tinha? Ainda morava com minha mãe. Catorze? Na oitava série ia ao banco toda semana, depositar o dinheiro da viagem de formatura. Nossa turma tinha dezoito alunos, a cada dia alguém trazia um bolo. A forma retangular, eu mesma cortava, três facadas numa direção, quatro na outra, vinte pedaços. Só a oitava série podia fazer isso: concorrência na fila da cantina. Os mais novos eram convencidos a comprar por nosso charme debochado. Organizar, produzir, vender, poupar. O dono da cantina concordava, fornecedor envolvido no processo educacional. Licença para comerciar por motivos didáticos. A conta estava em nome de quem? Não era a minha agência. Com meu CPF, fui na Caixa Econômica do outro lado da rua.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O momento exato

Bartoli esforçava-se para ouvir com precisão o que a boca desdentada de Tuone pronunciava. O pior não era ter de separar mentalmente cada fonema aspergido pelas gengivas solitárias, mas sim aguentar o bafo pútrido do velho barbeiro. Tuone falava, Bartoli anotava. Tuone era como o último exemplar de uma espécie extinta, ou melhor, era como um animal que guardava um órgão residual que não tinha mais função, mas dizia muito sobre o estado atual das coisas. Ele era o último falante de dálmata, mas não nativo; aprendera-o dos pais. Bartoli precisou das informações para o seu grandioso Das Dalmatische (ainda em âmbito áustro-húngaro). O dálmata morreu anos depois. Língua caquética, pisou numa mina terrestre em 10 de junho de 1898.

domingo, 4 de janeiro de 2009

matura

Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.
Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.
E pensas maravilha quando pensas anca
Quando pensas virilha pensas gozo.
Mas tudo mais falece quando pensas tardança
E te despedes.
E quando pensas breve
Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano
Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.
E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas
Luta, ascese, e as mós do tempo vão triturando
Tua esmaltada garganta... Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...
Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade
A esperança.

(Hilda Hilst, Cantares do Sem-Nome e de Partidas)


Com quinze anos eu ouvi da professora de literatura que a poesia de Castro Alves era condoreira, o condor sendo bicho de alto vôo, alto mais que tudo. Naquele ano eu dei meu primeiro beijo, abaixo da cintura o zíper aberto no pano sem cor de um carro à noite. Aos dezessete o amor se tornou palpável como busca, e eu mordia lábios inferiores tentando engolir qualquer coisa de sólido sem conseguir. Eu era tábua rasa tentando partir. / Faz quase três anos eu te conheci e encontrei o amor, così bello e perduto, uma falta que a gente faz, sem distração. Chegar no mapa ao lugar e não vamos residir. É escrever num corpo estrangeiro, embalar hordas de bárbaros, capricórnio / de asas douradas / o pé no coração; com penas e carne, mais alto que tudo.

sábado, 3 de janeiro de 2009

retrato de crasse: Márcio

Juli no patinete. minha sobrinha vai pra frente e pra trás. desdenhando o trajeto da quadra. Juli esbarra na mureta e cai rindo. do alto da minha janela, meu riso pensa precoce. chega o porteiro muito barulho. ela recalcitra, toca tambor com a terra do jardim. super trilili termino a dose de uísque e sem energia desço quatorze andares. quando chego Juli joga giz de cera na cara do porteiro. do alto do pensamento fico sem saber se cato o giz ou carrego a menina. como respeitar a soltura infantil? talvez eu nada de filhos. olho pra Severino e começo a dançar imitando uma música da Xuxa, descontraindo com humor. de cara vermelha, ele escarra no chão. diante da brutalidade inadmissível, me agarro revoltado ao patinete desculpa.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Algas

Acordou com uma forte onda grande molhando o seu pé. Quando tentou se levantar viu que seu corpo estava coberto de algas verdes. Mais forte era o movimento maior era o peso em cima dele. Relaxou e pensou em esperar que o sol forte secasse as algas, mas foi o contrário que aconteceu. À medida que as horas avançavam, os talos das algas entram por dentro da pele. Uma mistura de clorofila e sangue passou a circular por aqueles dois seres que passaram a ser um. Todos os seus pêlos floresceram e plânctons davam uma nova coloração aos seus olhos. Sua língua ficou multicolorida como de um raro coral pulsante. Ele já pensava como uma alga quando finalmente se libertou. Sua primeira ação foi se lançar para o fundo do oceano revolto.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Diário de Estância, VII



A praça pela primeira manhã do ano. Perdi os chinelos na praia. As passadas são duras, flerto com a idéia de parar um pouco. Não paro. Tenho medo de desmaiar e quero escrever uma carta de amor. Ela se chamaria “Amor 2009” e não se pegaria a ninguém, não excluiria ninguém, seria uma carta de amor toda-inclusiva. J. perdeu o trem e chegou um quarto de hora atrasado para a retrospectiva. Olhos Verdes foi fazer a guerra. O Maratonista tentou achar alguma ironia nas despedidas, e não havia o que ironizar. Tanto melhor que F. não tenha telefonado, isto prova por A + B que nada, rigorosamente nada mudou. Seria uma carta toda-inclusiva, de uma vez que se começa, a coisa perde qualquer encalço de fim. As solas desfolhadas.
 

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