quarta-feira, 23 de abril de 2008

tarde de maio

Fazia um ano aquele outono em que teu pai morreu. Havia um abraço no ar, para renascer numa fictícia primavera. Começamos a empacotar os móveis, os riscos, a trilha sonora. Ventava em todas as direções, o sol era muito claro, a calçada ensolarada. Para onde nos mudaríamos tão pobres? Os caminhos fechavam como cenas de crime. Os amigos nos deixavam à tona, nas margens do desentendimento, se suicidavam. E quando você me tomava pela mão, eram cachorros mortos pela estrada, amassados por âncoras que choveram no nosso único beijo, de despedida. Nos fins de tarde eu me escondia entre os livros e fazia tsurus de papel azul com os dedos de vidro. Acho que não quis me recuperar, mas aconteceu.

3 comentários:

Ana C. Bahia disse...

veludo e vidro que não dá pra esquecer

um abraço livre
e vôo de tsuru!


ei adorei.

sabina anzuategui disse...

Gostei muito também.

júlia disse...

Tu me inventaste. Não há um ser assim,
e nem poderia um ser assim haver.
O médico não cura, o poeta não consola -
uma aparição te assombra dia e noite.
Nós nos encontramos num ano inacreditável
quando as forças do mundo se esgotavam;
tudo estava de luto, murcho pelo infortúnio
e só os túmulos mantinham-se frescos.
Sem as luzes da rua, o Neva era um breu
e na espessa noite eu estava emparedada...
Foi então que a minha voz te chamou.
Porque ela o fez - ainda não entendo.
Mas vieste a mim, guiado pela estrela,
naquele outono trágico, entrando
naquela casa irremediavelmente arruinada
de onde fugira um rebanho de versos calcinados.

18/8/1956
Starki

Anna Akhmátova

 

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