sábado, 31 de maio de 2008

e vice-versa minudências particularíssimas

os jornais que sobraram - ou o que sobrou dos jornais na cabeça-mente dele? os papeizinhos recortes recortados hemeroteca absurda, pré-internet - ou isso tudo o extrato mais afável da massa encefálica, marca-d´água psíquica? massa folhada: caro suplemento dominical. poltrona xicrinha. café garrafa. recortes jornalísticos, ou seja, noticiosos, guardados – separados de meias e cuecas, mais precisamente na gaveta abaixo. ele ainda precisava disso? esse resto. curiosidade restante: as marcas de ferrugem do contato clipes–papel: o que vem antes: a ferrugem do clipes ou o amarelo do papel? Atestados da morte do leitor – daria aulas de português? o arquivo seriviria secretamente para um dor mais ampla.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

silêncio(5)

Luciana expressa em palavra e gesto cada mínimo pedaço de pensamento. Diz, marca, promete, muda de opinião, vive cada alternativa como única, investe-se de cada hipótese, chora, ri, desdiz, pede desculpas, desmarca, vai embora. Ela me lembra o Toró, guitarrista d'O buraco, a banda em que eu era baixista. Tínhamos quinze anos. Nunca tinha visto alguém conseguir tantas notas em tão pouco tempo. O Toró sentia-se bem por encaixar cada vez mais som no andamento das músicas. Era um atleta. Nossa música era um quadro pesado com muita tinta em relevo. O Toró marcava o tempo com as notas, pulava as pausas, nunca fazia silêncio. Ele dizia que eu tocava devagar.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

e riram tanto

era sexta e se embrenharam animados pelo tubo de ensaio. esqueceram o dia. entraram no dia. enveredaram caminhos na mata recortada. cansaço não existe. bananais rosa, ondas, azulejaria e vísceras em perspectiva. coração batendo forte, dentro do peito: acho que oxigênio a mais, em círculos e vento. fizeram contato, alquimia de memórias, improvisaram loucurinhas e mais loucurinhas desejadas, tudo a céu aberto. avançaram além do planejado, num impulso barroco - que é a origem de todo ser no caso de [. antes mesmo da linguagem, percorreram infinitos espaços rindo em branco. vazio não, branco. não souberam explicar porque. e foi assim tão cheio e pleno o dia.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

o herói da vez

No fundo, sou um forte. Já fui formiga, montanha e antes ainda, Herberto. Mamãe quem deu, o nome e esse cordão de ouro. O resto, conquistei do meu rosto. Essa navalha sempre na carne, muita gente polpuda já me quis assim. E eu dei liga? Ah, o corpo está dentro da gente. Tem tarde que passo na porta da academia e é uma vontade de me juntar aos rapazes que só. Coisa de genética, sabe? Tijolo sobre tijolo, aumentar o Bastiani aqui. Ah, vou parar com isso que não gosto de falar tanto, mas quando perguntam meu nome, olho no retrovisor de mim mesmo, arranjo a língua no encontro do lábios e que me importa? É bobagem, mas a gente quer mesmo é ser como ele pelas coisas. Daí que digo: -Jesus, prazer só por começar.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Dois quartos

Morávamos numa casa estranha com dois quartos. Um sobrado na rua Cardeal Arcoverde, bem em frente ao cemitério. A casa original fora dividida em três partes: no andar de cima ficava o escritório do dono. Era um homem de sessenta anos, ainda conservado, embora de maneira nenhuma bonito, que vivia da renda de aluguéis. No andar de baixo, a frente estava alugada para uma loja de móveis antigos. Nós morávamos embaixo, nos fundos. Uma porta de metal se abria na calçada, levando a uma escada de trinta degraus, escura e estreita, cercada de paredes. No fim da escada, a porta da casa. Uma sala grade com piso de lajotas, ccom uma única janela abrindo para os fundos da loja.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Odotron

É uma máquina estranha, comentou o pai. Tratava-se de uma estrutura que, com várias hastes articuladas, movia e abaixava placas de rua arrancadas aos postes da cidade, dispostas de tal maneira que lembravam um grande mapa-múndi ou, pelo menos, uma esfera colorida. E como funciona, perguntou o primo. Fácil. Acionou uma alavanca. A esfera girou gemebunda e veloz sobre o seu eixo, acalmou-se e uma das hastes equatoriais deslocou-se, trazendo até o rosto dos espectadores a velha placa duma avenida famosa. Uma música evocativa começou a soar da esfera; a mãe disse, Vocês viram o corso? Eu me lembro disso! E todos tinham visto também. Bela máquina esse Odotron.

domingo, 25 de maio de 2008

Madame Bovary

Quando ele abriu a webcam eu reconheci o rosto, procurei por fotos em sites de fofoca para confirmar e era ele mesmo, perguntei e ele não negou, só pediu para ser discreto. Disse que estava entediado, que se sentia muito sozinho e que estava piscando (sic) de tesão. Ele trabalha muito, sabe, não é fácil escrever novelas – e a atriz principal metida naqueles escândalos, como sustentar uma mocinha que cheira cocaína? Perguntou o tamanho do meu pau, disse que seu companheiro (sic) chegaria a qualquer momento e que ele não agüentava de tanto tédio e tesão. Marcamos num motel. Duas semanas depois a mocinha teria um caso com o vilão e isso causaria comoção nacional. A audiência, leitores e leitoras, tem lá o seu preço.

sábado, 24 de maio de 2008

heterossexualismo

banheiros abrigam pernas. uma 3a divisão: frontal, simétrica, hierárquica, patriarcal etc etc. e o pau, que nasce torto. resta o pau. alguém se esqueceu de pegá-lo. tinha ficado lá. coletividade ironicamente disse: 3a perna. ho-homem anda melhor que todo mundo ou é um tripé? afinal não mija sentado – privilégio – exposto em vitrine, aquela coroa de pêlos, brilhantes. depilados agora. acima da vitrine pisca frenético o letreiro "mictório". todo um desinteresse, o desfile de falos, feios, fátuos. quem é que ficou preso? serão as moças, do lado de lá. de lado, de costas, de cima. efeminadas, ontem. o olhar que se fixa. uma urna de votação (lula?). a urina desce, o rosto desce, ou sobe, a mão uma porventura solta, a outra ocupada em querido processo de higienização. cada macaco no seu galho graças a deus.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

silêncio (4)

O silêncio de Antonio não é opaco de parede, é transparente de vidro muito limpo. O silêncio de Antonio aceita a mão que sustenta o golpe. Rompe-se em partes agudas. Uma parede machuca quando resiste. O silêncio de Antonio corta o braço pelos lados enquanto os músculos se esforçam para frente. O entusiasmo do braço forte é que permite a sedução. Um pouco do vidro quebrado fica na moldura da janela e dificulta a volta do braço. Enquanto respira e elabora a estratégia para voltar, a mão experimenta a felicidade calma de quem se livrou de um desespero. O silêncio de Antonio é discreto, é mistério com cara de melancolia que seduz o curioso.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

adeusão

Há sempre alguém que morre antes. Torquato Neto abriu o gás na madrugada seguinte ao seu 28º aniversário. Ouvi dele o Wally dizer que tinha medo de pau e medo da mãe. Delicadeza do excesso, quem não tem? Agora o vejo vestido nesse parangolé do Oiticica, herói marginal cansado. O cansaço dos que são pouco contemplativos, sempre tem alguma coisa que liga a outra na cabeça e o corpo que é uma doença. Como não procurar nesse homem vivo enrolado de vermelho a sugestão da morte o rondando anos antes? E se quem publica essas fotos viu e por isso publicou? Será que procuro sinais por garantias de que ao olhar no espelho eu não faria, eu não farei? Como? Procurando por absolvição no rosto de um suicida?

terça-feira, 20 de maio de 2008

Máquina azul

Nós escrevíamos toda semana. Eu entregava minhas páginas datilografadas, havia computadores na faculdade mas naquele ano eu não entendia seu uso como essencial. Tinha a máquina de escrever azul que meu pai trouxe de carro, alguns meses depois que passei no vestibular. Apegada a essa máquina, emocionada porque o pai a trouxe sem que eu pedisse. Havia saído de casa meio fugindo, a mochila e o desejo de estar independente, não havia levado nada que pesasse porque simplesmente não podia carregar. Quando o pai apareceu sem avisar, era como se declarasse: você não pode deixar tudo para trás. A máquina era o que você mais gostava. Eu estou aqui para te lembrar.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Inúteis

Estão fazendo, com vagões velhos do metrô, um recife artificial. Agora, a que raios serve um recife de aço e rodas e balaústres? Amarraram os vagões uns aos outros, um bloco e, com um grande guindaste, os vagões foram baixados na água lentamente, soltando violentas borbulhas do ar que escapava à entrada da água do rio Hudson. As autoridades, no pier, olhavam os vagões naufragarem, os vagões do metrô de Nova Iorque; o prefeito, uns vereadores, o conselheiro de obras públicas. Uns peixes metálicos chisparam e correram do bloco que afundava ruidoso; os vagões imergiram totalmente a afundar e sumir na água turva. Escapou dos vagões e saiu boiando um urso de pelúcia cor-de-rosa.

sábado, 17 de maio de 2008

Mão boa

Hum, que delícia!, Mas não é mesmo, menina?, Quem fez?, A Jandira!, Jura?, Ai ela tem uma mão tão boa pra essas coisas!, Ai mas também né, negro tem uma mão pra cozinha!, Mão boa né?, Eu até vou pegar mais um pouco, Pega, menina, eu também, Que delícia! E a Jandira é boa?, Ai, obediente, não dá gasto, sempre sorrindo, Que beleza, Às vezes tem que dar uns gritos, né, porque senão, Ah tem que ter respeito né, Que delícia!, Eu já tô no terceiro pedaço!, Eu também!, Parece que tô até passando mal, É você tá meio esverdeada, menina, Ai parece que não caiu bem, Ai eu também tô meia tonta, Ai será que tinha alguma coisa no doce?, Ai eu não tô me sentindo bem, Ai, não desmaia, deus do céu, Jandira! Jandira, acode! Ai eu também vou desmai...

sexta-feira, 16 de maio de 2008

flor da manhã

descabelados na cama fria, jamais arrumada ou vestida, bocejos sem cansaço. escuto-os. tentado se levantar lençóis buscando manter-se em pé. o asco da noite anterior decantado, o corpo morto [cabelo] [vinho tinto tecido]. levantar – movimento desarrumado – tronco, ancas e pernas se encaixam por quê? não seriam uma coisa só? colocar-se sobre os pés: conjunto amarrotado de tecidos despertos em fleuma dirigida e firme. objetivo: 1) banheiro pálido; 2) janela ou vista; 3) escova. ligar o som: talvez, de acordo com o ruído. a arte de manter-se em pé. os lençóis finalmente se levantam e distintos quase se deitam, mas há: 1) que descolar certo amarrotado; 2) que sair; 3) evaporar.

silêncio (3)

Edu entra engatinhando por um dos cantos da sala. Nina e Alfredo, os outros bebês, brincam com as mãos e sorriem. A porta é fechada atrás de Edu. Ele, que não domina as possibilidades de sedução pela palavra adequada, começa a berrar incontinente sua saudade de alguma coisa atrás da parede. Nina e Alfredo assustam-se e unem-se nos gritos. Por três minutos, o barulho amplificado dos bebês incomoda a cada um na sala de projeção. Dois mocinhos no fundo começam a imitar o barulho da tela em sua idiotia ritual. A porta é aberta. Os dois imbecis são arrastados para fora enquanto clamam por liberdade como um convite ao combate.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

rotina

achava chata essa coisa do amanhece anoitece amanhace e anoite, se
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____________________________________ houvesse substância nisso.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Eu havia me abrigado dentro da boulangerie, porque a céu aberto minhas costas percebiam o filete de grãos na espinha dorsal das coisas. Via pela janela a cidade castigada pela tempestade, como se alguém houvesse levantado entre os dedos um punhado de areia seca e espalhasse sobre o verde do quintal imaginário. Havia calefação e uns homens tomavam a cidade das palavras com seu dogma pelo ceticismo: "Façam seus votos abortivos no caixa da direita". Peguei a senha daquela fila. Por favor, creiam-me, é o mais simples que posso dizer, hoje que não tenho sentimentos será difícil explicar. Daí deu no saco e voltei pro balcão: Quero aquele sonho, um pastel de Santa Clara e uma bomba. Na cidade vermelha foi pra sempre pôr-do-sol.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Socialmente justificável

Ele sempre morou no centro. Eu já estava formada na primeira vez em que fui à sua casa. Era um apartamento alugado, uma sala pequena, na esquina da Praça da República. Eu também morava num lugar pequeno e alugado, na verdade bem menor, e não esperava nada maior ou mais sofisticado. Nem tinha nenhuma expectativa quanto à aparência do lugar, isso não passava pela minha cabeça: sua figura para mim era um centro de discernimento e raciocínio, uma memória de pensamentos, seus e dos livros que eu não conhecia, tudo o que havia nele e que eu só podia acessar aos poucos, aleatoriamente, nas situações em que fosse socialmente justificável que eu o encontrasse, e somente se lhe ocorresse dizer as coisas que eu não poderia perguntar, porque eu nem sabia quais fossem. Mas havia alguém comigo naquela visita. Ao sair essa pessoa comentou que a decoração era tosca. E de repente percebi algo que eu não enxergava.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Procura

Observava os trevos, um a um. Fuçava pelos canteiros como um cachorro atrás da caça. Com a lente de aumento, esquadrinhava cada centímetro da terra, atrás de um trevo de quatro folhas, por menor que fosse. Do lado, o cachorro não parava de latir para tudo aquilo que via; não havia um besouro para o qual o canídeo não latisse, seus latidos preenchiam todos os milissegundos e todas as voltas de raciocínio. Alguém pôs a cabeça por uma janela e mandou-o calar a boca; um carro chegou buzinando. O trifolioscopista nosso, tão nosso!, finalmente achou um trevo, um delicadíssimo trevo de quatro folhas. Não será uma deformidade? Sacou a pinça para puxá-lo à terra e, como raio, o trevo enfiou-se novamente no solo.

domingo, 11 de maio de 2008

Tudo vai ficar bem

E quando o meu pai inaugurava a madrugada açoitando os móveis da sala que se curvavam à sua presença e o grito estridente de um copo quebrando rasgava o casulo que velava o meu sono morno sob os lençóis de lavanda que a faxineira lavara no sábado, o choro fino e mudo da minha mãe despencava nos meus ouvidos e era como se as lágrimas que apanhavam na cozinha escorressem pelos meus cabelos e me afogassem por meia hora, uma hora - uma vida - abraçado aos meus joelhos ela me beijava a voz líquida "vai dormir" e ela dormia, e ele dormia, e a noite dormia, e eu dentro de uma noite mais escura que eu acendia fósforos de ira e solidão no que hoje eu diria ser a caixa toráxica da minha melancolia, mas não naquele tempo.

sábado, 10 de maio de 2008

morena

grande uma mulher com um penteado enorme e um microfone. um mulher grandíloqua enorme e uma penteada uma microfone num super. uma voz homérico e um mulher enorme a mesma a superproduzindo-a. a pós-à si mesma a mulhera. força na peruc a. infernal – nau altíssona acima do infer – no penteada. um mulé – rrr – super mulher ressonância e um agressiva com uma microfonia num super. num hiper a a a rebenta a flora amora amor. infinita nua – voz sterea mulher retumbante um mulher histério ô pública deslumbrante e ê penteado ô penteada enorme descomunal vestido hiperbólica microfone ensurdecedora a-a. é a.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

silêncio (2)

Vermelho, ele disse, e apertou o botão. Em seguida, passou a argumentar sobre a escolha. Rápido, o raciocínio construído lhe deu certeza. Vermelho. Quando viu o botão verde, negou logo, mas os argumentos não ajudaram. Tentou desapertar o vermelho para pensar melhor. A máquina começou a fazer um som agudo de correias freando. Continuava ainda em marcha. O homem reapertou o vermelho que já escapava, o que não evitou o barulho. Tinha já certeza de que o verde era a escolha certa. Olhou desesperado para o interlocutor (que continuava quieto): por que você não me ajuda? A máquina funcionava de maneira estranha. Foi quando o homem percebeu um botão amarelo no canto do painel.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

sem nenhuma

dentro do compartimento daquela noche perdida entre a parede dos banheiros e o branco. as pessoas consumindo o próprio compartimento destruído, dividido no centro esquerdo do peito. cada batida treme, faz tremer toda a extensão do corpo, incluindo tudo e as costuras que das costelas descosturam um vazio dentro do outro, víscera por víscera, carne, flores. sem nenhuma garantia, amor. sem nenhuma, sequer. eu, que já estou um pouco atrasada e não tenho a certeza de que____ depois de cada vez, preciso dizer: não há mesmo o que dizer além do que eu já te. além do que o silêncio absoluto já não. além do que não importa exatamente o quê, mas que. sejamos francas: a vontade - a vontade que eu sinto e você.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

my boat is empty

Tantos traços animais, num só quarto de princesa. Cresceu, virou rainha cansada de desastres, correndo nossa cena em direção à praia. No descampado espanto do mar, lançou uma maldição ao olhar do outro antigo e por um raio partido foi transformada em sereia. No barco amurada, engraçando os dentes de madeira entre velhos marinheiros e disparatadas garrafadas de bons augúrios, escreveu no pensamento de um navegante: aqui é tudo de ponta cabeça e as aves não têm jardim. O mundo é mesmo uma claustrofobia circense. Jura que não gosta de turismo, nem de verniz e que espera pelo dia que uma pulga, que uma traça a roa por dentro o corpo de madeira, assim sumindo um pouco num farelo pela água.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Meu tio da América

Um homem pode valer de vários modos; o mais seguro é valer pela opinião dos outros. A pessoa é um conjunto da memórias de outras pessoas que conheceu durante a vida. Não existe o desejo do sujeito; todo desejo é mimético. Vou acumulando definições que desmancham a idéia de sujeito, porque eu não podia responder, naquele dia em que ouvi chorando os defeitos do meu texto. Não podia responder à pergunta que ele fez depois que tentei explicar todos os motivos porque havia escrito daquele jeito, todas as opiniões que escutei, sugestões a que tentava atender, do que devia ou poderia escrever. Ele apenas me perguntou: "mas afinal, o que VOCÊ quer?" Pausa. Eu não digo nada porque só consigo formular uma resposta mais tarde. Não é evidente? Eu quero escrever. Não. Para ele, isso não é suficiente.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Linotipos

23 de dezembro de 1978. Trabalhar na antevéspera de Natal é massacrante. O funcionário mais novo, que enfiava os linotipos no furgão resmungava. O que estava ao volante trabalhava há muito tempo, já reclamara assim também. "No fim da tarde estamos de volta, são só quatrocentros quilômetros... oitocentos!". Entre tantas placas de linotipos, havia algumas caixas marcadas: Memorial da Ilha Negra. "João, onde fica a Ilha Negra?". Já na Dutra, em direção a São Paulo, João respondeu: "Não é perto da Ilha do Governador?"; "É que um tal Neruda escreveu sobre a ilha..."; "Hum... parece nome de japonês... deve ser algum puxa-saco do governador"; "Pode ser, vão imprimi-los em São Paulo... o que será que tem na ilha Negra?"

domingo, 4 de maio de 2008

ou "Nada, esta espuma"

Ia ter um debate entre professores. Eu mal sabia. A Júlia chegou, sentou do meu lado e explicou, "é que um é da escola francesa, outro da alemã". "Ah, claro", me veio. Foi na época da ocupação da reitoria. Cada geração tem o seu 68? O meu foi melancólico e relativista, o da Júlia não sei. A sala lotada, mas logo ela achou um lugar duas fileiras à frente. E foi a única que bateu palma no meio de uma fala. E saiu no meio - sem dar tchau? Eu fiquei até o fim. Estava frio, os professores apertaram as mãos, mas tudo terminou em dúvida e reivindicações. Eu ainda fui para a ocupação, dar uma volta, sem botar muita fé. Na frente do prédio uma fogueira forte aquecia o ar. E os tapumes estavam grafitados de cores vivas e presentes.

sábado, 3 de maio de 2008

olha que ele vai atravessar a rua

ele vai atravessar a rua no centro seguindo os amigos ligeiramente atrás deles. a sua fala parece puxá-lo para algo que está mais na diagonal da outra calçada. uma direção rouca na rouxidão de uma calçada fica pra trás. fica pra trás no centro. fica atrás e atravessa a rua juntamente aos garotos. ele vai e atravessa mas enquanto ele atravessa chega à conclusão de que algo raro algo raríssimo aconteceu. ACABA ele acaba de receber a leve brisa do som e a brisa leve brisa da brisa de um carro, que às 22 cruza e passa - cruza a encruzilhada de mim a bicha pensa Encruzilhada de mim-quase-atropelada foi-se acabou-se. o menino continua a ronda noturna o passeio o footing diria a sua avó pelo menos nos jornais que sobraram. ela que pertencia a uma geração que bebia menos.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

da janela

de manhã aquela gritaria atravessando. você podia ver lá embaixo os loucos rodopiando no pátio. e o que é ser louco? eu não devia nunca ter escrito essa palavra. um deles pegou uma pedra e raspou no chão, riscando um círculo, ou talvez não exatamente um círculo, entendeu? e depois guardou a pedra junto com as outras pedras de todos os dias do mês. no parapeito da segunda janela, se você começar a contar da esquerda para a direita, ou quase isso. um montinho de pedras era o caminho dele ou quem sabe o relógio dele ou o silêncio. depois das 14h eu sei que ninguém escutou mais [ ] e ninguém mais quis ver o que eles tanto insistiam daquele lado de lá.
 

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